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Opinião. "Mulher-Maravilha 1984": Um olhar intemporal sobre o consumismo

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Num ano em que a pandemia se apoderou de praticamente tudo, as salas de cinema já não são o que eram e vários filmes muito antecipados foram reagendados. Pode dizer-se que é um risco a estreia de novas produções nos cinemas, mas sendo uma história esperada pelos fãs da DC Comics, há a promessa de números mais promissores. 

Na sala de cinema UCI do Arrábida Shopping podiam contar-se pelos dedos das mãos o número de pessoas que assistiam ao novo filme da heroína amazona. Ainda assim, “Mulher-Maravilha 1984” foi o filme mais visto da semana de 10 a 16 de dezembro em Portugal, tendo estreado na quarta-feira, dia 16.

No primeiro filme da Mulher-Maravilha, que saiu há cerca de três anos, podemos observar como Diana Prince (Gal Gadot) se envolveu com a humanidade e desde então decidiu permanecer e ajudar aqueles que corriam perigo, deixando para trás a sua família Amazona, na ilha oculta de Temiscira. Após muita guerra e reality-checks sobre o mal que existe entre os homens, este primeiro filme termina com a morte do primeiro e único amor de Diana, Steve Trevor (Chris Pine).

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É um pássaro? É um avião? Não, é a Mulher Maravilha!

"Mulher-Maravilha 1984" passa-se 66 anos após os acontecimentos do primeiro filme. Começa com um flashback de uma espécie de Jogos Olímpicos das Amazonas na ilha de Temiscira, nos quais Diana participou em criança. Esta cena mostra como a guerreira sempre foi extremamente dotada, mas após um percalço na competição, esta toma um atalho para vencer. Vitória esta que é impedida pela sua tia, Antíope (Robin Wright).

A jovem Diana protesta que não é justo ter sido parada pois estava prestes a vencer, ao qual Antíope lhe responde que uma guerreira digna de vencer não toma atalhos e que a única coisa que importa acima de tudo é a honestidade e a verdade. No final do filme percebemos o verdadeiro significado desta primeira cena e o quão se adequa aos valores que observamos na heroína.

Após esta retrospetiva, começamos por ser apresentados a um mundo consumista, em 1984, completamente dominado pelo sonho americano de tudo querer e tudo poder, o céu é o limite. Ouve-se em todas as televisões o discurso de Max Lord, um empresário ambicioso, e para os mais distraídos (como eu), pode passar despercebido que o mesmo é representado por nem mais nem menos do que por Pedro Pascal, conhecido pelo seu papel na Guerra dos Tronos, e mais recentemente na série da Disney+, ‘O Mandalorian’.

Este discurso remete para a principal mensagem do filme que explora o modo como a ilusão, a ganância e desejos podem enlouquecer as pessoas. O principal vilão do filme é Max, que consegue obter o poder de conceder todos os desejos do mundo, exigindo como paga a posse mais valiosa de quem pediu o desejo. Como se não bastasse um vilão, Diana também terá que enfrentar uma vilã inesperada que nos é primeiro apresentada como a simpática e desajeitada Barbara Minerva (Kristen Wiig).

É particularmente interessante observar como Barbara se transforma lentamente em Chita, uma das maiores inimigas de Mulher Maravilha na banda desenhada da DC Comics. Após o seu desejo de ser como Diana se concretizar, Barbara vai descobrindo que para além da confiança e popularidade, também obteve os poderes da super heroína. Ao longo do filme conseguimos ver como a sua posse mais valiosa, a sua bondade e empatia, se vai perdendo à medida que fica mais fria e poderosa. Mais uma vez, a forte crítica do filme ao que muitas vezes deixamos para trás para obter aquilo que queremos, muitas vezes sem termos total consciência do que estamos a perder. Como se costuma dizer, só damos valor ao que temos quando o perdemos.

Nem mesmo a nossa heroína escapa à tentação de ceder aos seus desejos mais íntimos e quando toca na Pedra dos Desejos, ainda sem saber o seu real poder, admite que a única coisa que deseja é ter Steve de volta. Por magia mesmo, um homem muito parecido com o seu amor perdido começa a ‘perseguir’ Diana, até que a certa altura a aborda e diz algo que só Steve saberia. Mais tarde percebemos que o piloto ‘voltou à vida’, habitando o corpo deste homem que depois vemos apenas como Chris Pine, vendo-o como a Mulher-Maravilha o vê.

Quando a trama se adensa e a Pedra dos Desejos desaparece, percebemos que o artefacto que parecia ser de pouco valor é na verdade uma ferramenta divina colocada na Terra por um deus (Dolos da mitologia grega) que se diverte a ver civilizações ruir. Quando Max Lord absorve a pedra e se transforma no senhor dos desejos, a narrativa evoluí com a consistente busca por possuir mais e mais, até que nada o satisfaz e é necessário para Max obter tudo o que há na Terra.

Como o desejo exige o bem mais precioso como paga, Diana apercebe-se que os seus poderes estão a desaparecer e eventualmente tem que abdicar do seu desejo e deixar Steve ‘partir’ para conseguir derrotar Max e parar a destruição que ele está a causar no mundo. Quando o trailer para Mulher Maravilha 1984 saiu, foi revelado que Steve iria voltar mas sem mais detalhes sobre esta ‘ressurreição’. Percebemos que esta aparição é necessária para levar Diana ao próximo nível e mais uma vez, como habitual nos filmes de super-heróis, abdicar da própria felicidade pelo bem maior. Fez sentido trazer o piloto de volta para dar mais ênfase à mensagem do filme e claro, agradar aos fãs do casal.

Avançamos para a batalha final na qual Diana, já com os poderes reestabelecidos, aparece com a armadura da lendária guerreira amazona, Astéria, sobre a qual ouvimos falar na primeira cena do filme, na ilha de Temiscira. Pronta para o confronto, aparece Barbara, já em forma felina e como a própria diz, “predadora de topo”. Após uma luta aparentemente equilibrada, Diana prevalece e deixa Chita às portas da morte, não deixando de a salvar de morte certa. É uma cena melancólica pois uma personagem que nos foi apresentada como 'relatable' e afável transformou-se numa vilã sem empatia e bondade.

Indo ao encontro de Max, completamente rodeado pelo poder dos desejos que conseguiu ‘angariar’ de pessoas de todo o mundo através de uma transmissão global de televisão, parece impossível derrotar este vilão que não deixa de ser apenas um homem ambicioso que se deixou levar pela insatisfação tão natural ao ser humano. Quando tudo parece perdido, Gal Gadot entrega um discurso emotivo no papel de Mulher-Maravilha sobre o que realmente importa na vida e como a verdade é tudo aquilo que precisamos e que podemos dar. Aqui percebemos que todo o filme levou a este clímax onde a heroína, apesar de ela própria ter sido tentada pelos seus desejos, reconhece o que tem de ser feito mesmo que seja a coisa mais difícil do mundo.

O discurso é aparentemente dirigido a Max, mas depois percebemos que o Laço da Verdade está ligado ao transmissor da emissão, levando a sua mensagem a todo o mundo, apelando a que os desejos pedidos fossem renunciados para evitar que a humanidade se auto-destruísse, como tantas outras civilizações fizeram anteriormente. O grande vilão acaba por se aperceber que com toda a sua sede de poder quase perdeu o filho, e então também ele renuncia ao seu desejo. Segue-se uma cena de aquecer o coração quando se reencontra com o filho, Alistair (Lucian Perez).

Já na cena final, vemos Diana num mercado de Natal e como que por coincidência, cruza-se com o homem que a alma de Steve ‘habitou’ e os dois trocam umas palavras cordiais. No fim, cada um segue o seu caminho.

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Perguntas deixadas por responder

Apesar de ser um final feliz e reconfortante, algumas perguntas ficam por responder e pensando bem, muita coisa não faz sentido. Primeiro, ficamos sem saber o que acontece com Barbara depois de renunciar ao seu desejo. Voltou a ser a mesma Barbara afável? Provavelmente nunca iremos saber. É de lamentar visto que seguimos de perto a sua transição para o ‘lado do mal’, mas não temos direito a ver se voltou a entrar nos eixos?

Tendo sempre em mente que isto é uma grande produção de Hollywood, é natural que nem tudo faça sentido, mas é um grande acto de fé assumir que todas as pessoas que pediram desejos renunciou ao que tanto desejava, só por causa do 'belo discurso' de uma super-heroína. Talvez a influência do Laço da Verdade tenha ‘coagido’ as pessoas a fazerem o bem, mas fica a incerteza.

Também parece que o mundo volta completamente ao normal após a batalha final, embora todos os desejos pedidos tenham tido impactos destrutivos como o aparecimento de muros do nada e o lançamento de ogivas nucleares entre os Estados Unidos e a Rússia. Mais uma vez, talvez o Laço tenha apagado as memórias de tudo o que se passou antes.

Acabamos o filme sem saber o que aconteceu a Max Lord e sem nenhuma pista para qual será o próximo passo de Diana, visto que a próxima vez que sabemos que aparece é no filme da DC, Batman VS Superman: O Despertar da Justiça, que decorre na modernidade (lançado em 2016). Na cena pós-créditos podemos ver que ao contrário do que se pensava, a guerreira Astéria (Lynda Carter, a Mulher Maravilha original em Hollywood) ainda vive e faz uma vida aparentemente normal no meio da humanidade. Pode-se ler esta cena como um Easter-Egg ou então como apenas uma adição para concluir a história, trazendo de volta esta referência do cinema.

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Mulher-Maravilha continua a ser a heroína mais sentimental do universo DC Comics

Um aparte interessante é a forma como vemos pela primeira vez a Mulher Maravilha a voar, tal e qual como o Super-Homem. Nas versões de banda desenhada já se sabe que a Mulher-Maravilha tem vários poderes que não são mostrados nos filmes live-action, mas foi uma boa surpresa ver o desenvolvimento desta nova habilidade. 

A forma como Steve descreve o ato de voar em cenas anteriores do filme é relembrada quando vemos Diana a conseguir voar pela primeira vez. Temos aqui mais uma razão para a participação de Chris Pine neste segundo filme a solo da heroína. Se tivéssemos que remover tudo o resto que Steve adiciona à narrativa, só o facto de despoletar esta importante habilidade de Diana já o faz valer a pena. É uma cena forte de se ver, especialmente quando evoluí para o ‘balançar’ de relâmpago em relâmpago com o seu fiel Laço da Verdade, em direção à batalha final.

"Mulher-Maravilha 1984" é um filme visualmente impactante com várias cenas lindas e de contos de fadas. Gal Gadot faz o trabalho incrível habitual de representar Diana Prince e ser a personificação da honestidade, bondade e amor. Chris Pine regressa como Steve Trevor para dar aquele ‘boost’ à heroína e verdade seja dita, os dois são 'couple goals', com um dinâmica semelhante à de Capitão América e Peggy Carter da Marvel, mas com os papéis invertidos.

O filme deixa bem assente a mensagem de valorizar o que temos e tomar cuidado com aquilo que desejamos, literalmente. Para além disto, existe também a crítica súbtil ao modo de vida que a humanidade leva e o consumo inconsequente e desenfreado que cada vez mais é uma regra em vez de exceção. No geral, é um filme soft que se adequa à época do ano em que estreou e que talvez seja uma faísca numa mudança positiva para as salas de cinema portuguesas, que neste momento enfrentam fortes dificuldades. 

Se tivesse que dar uma classificação de 0 a 10, daria a "Mulher-Maravilha 1984" um seguro 7.

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