COMING UP | The Prom
A Netflix
volta a ser a terra dos sonhos para os seus realizadores. Depois de anos ao
leme de Glee, Ryan Murphy voltou à sua paixão pela música da Broadway,
e cumpre o desejo de ter um elenco de sonho como cabeças de cartaz e ainda
juntar a esta fantasia a possibilidade de voltar a provar-se um ativista pela
tolerância e igualdade. É um sonho, mas, infelizmente não faz história. The
Prom tem um embrulho brilhante, é extremamente reluzente, para um presente
cheio de imperfeições que pode mudar a vida de um adolescente de 13 anos que
assista a um filme com a temática LGBTQ+ pela primeira vez, mas que não
acrescenta nada a quem já é um consumidor deste género de películas. A
moralidade do filme tem impresso um carimbo que parece ter vindo dentro do
pacote de restrições de uma produção da Disney e que em nada sabe aproveitar as
possibilidades de uma premissa altamente inteligente produzida por uma
plataforma que é, cada vez mais, a casa da liberdade. Ryan Murphy desilude na sua
excentricidade perdendo o seu jeito diferenciador de desconstruir preconceitos
para introduzir o primeiro conto de fadas gay da indústria. É uma
montanha russa, em The Prom o que é bom é mesmo muito bom, mas o que é
mau chega a ser péssimo. Onde há brilho devia existir mais fogo, numa narrativa
vazia em que os personagens não são suficientemente conectáveis ao ponto de nos
apelar pelas emoções. Depois de muitas parcerias bem-sucedidas com a Netflix
está descoberto o primeiro erro desta nova era de Ryan Murphy para o
streaming. Vamos entender tudo em mais uma edição do Coming Up.
Juntar o teatro
musical dos grandes astros da cidade que não dorme com a luta da comunidade
LGBTQ+ e ainda puxar pela aceitação na típica idade da estupidez parecia ser a
conjugação perfeita para uma autêntica obra prima, mas o resultado é uma
história que se perde e não sabe gerir o seu foco. A metalinguagem dos Tonys
ou de algumas peças renomeadas salvaram muitos diálogos de serem tão ridículos
quanto uma série low budget da CW. E isto é grave por estar longe da
marca que Murphy já deixou na indústria. O amor de Emma e Alyssa já venceu o
prémio de casal mais oco de sempre do cinema, numa total falta de química e
afeto vindas de uma interpretação pouco convincente das duas atrizes, mas
sobretudo por culpa de um guião que nos oferecesse argumentos para comprarmos o
amor entre as duas personagens. É mais o tempo de antena que passam a debater a
importância de irem ou não ao baile do que aquele em que demonstram afeto.
Alyssa até podia ser uma jovem insegura pela relação com a mãe castradora, mas
insegura nem é o melhor adjetivo para a definir, a rapariga chega a dar-nos
raiva pela sua inércia e capacidade de resposta. É um bonito bibelô com zero
tempo de ação, um enfeite desnecessário que apenas fez com que os autores
desperdiçassem tempo que poderiam ter utilizado para dar um alicerce à causa de
Emma, talvez tivesse existido um maior aproveitamento desse tempo se fossem
anexados alguns flashbacks da infância de Emma. Até porque essa falta de
empatia faz parecer os momentos mais emotivos como algo extremamente forçado
que mais depressa nos faz rir do que chorar.
E vamos tirar um
segundo para encarar a inspiração na Broadway. Obviamente não estávamos à
espera de ver um Les Miserables, mas também não estaríamos, certamente,
a aguardar um musical onde nenhuma canção tenha força suficiente para fazer
dele algo memorável. Aliás, The Prom acaba por cair no estereótipo de
produções musicais que afastam o público deste género. Há momentos verdadeiramente
enfadonhos, com músicas que pela sua falta de força parecem durar séculos e que
nem na voz inigualável de Meryl Streep conseguem convencer. Vamos ignorar todas
as atuações de Streep, e atribuir o galardão de melhor momento musical a Nicole
Kidman e o seu Zazz. Talvez o momento musical mais teatral da trama, mas
também o melhor conseguido e que conseguiu tornar-se a tábua de salvação para
não nos questionarmos sobre o porquê de termos alguém com a carreira e renome
de Kidman a interpretar uma personagem que é praticamente figurante no meio da
ação. Se bem que este foi o seu único momento de destaque, fora isso foi apenas
mais um talento desperdiçado por um argumento que peca por excessos até na hora
de definir o número de personagens em cena. De um lado temos um grupo de quatro
artistas em que apenas dois são devidamente desenvolvidos, do outro temos uma
escola onde parecem existir apenas seis alunos, e ninguém parece importar-se
minimamente em mascarar a falta de noção em algumas cenas onde deveria estar
grande parte da escola em peso, como no pedido de desculpas a Emma.
Em matéria de
elenco, e já que falámos dela, nem Meryl consegue salvar algumas cenas da
narrativa. Em modo diva depressiva não lhe faltou expressividade e eloquência,
contudo, apesar de ser um pape fora da caixa dentro do que são os padrões de
Ryan Murphy para as grandes divas com quem trabalha, Dee Dee não é muito mais
do que um inverso trabalhado em papel químico por cima do desenho que a atriz
fez para protagonizar Florence. A culpa é de Streep? Não, a culpa é mais
uma vez do guião que lhe atribuiu como instrumento de trabalho uma personagem
que tinha tudo para conquistar o público, mas que ao longo de toda a história
é, quase sempre, unidimensional, num tom de comédia forçado que se fosse
interpretado por outra pessoa se tornaria num sinónimo direto de ridículo. Nem
mesmo no momento de redenção, a figura perde a sua excessiva loucura e entrega
a mensagem, que até é importante e poderia servir como um bom remate para a
trama, com uma ligeireza quase infantil digna de uma produção da Disney, em
comparação direta, Meryl conseguiu um melhor desafio em Into The Woods do
que aqui, e estamos a falar de escalões de produção com perspetivas
drasticamente diferentes. Mesmo assim é louvável ver as reviravoltas da atriz
para trazer algum trejeito memorável para a sua Dee Dee. A entrega durante as
atuações musicais só revela a má escolha da construção da banda sonora, a força
está lá, mas parece que cada nota é dada em vão em versos mudos sem charme ou
delicadeza. Foi Meryl, mas podia ter sido qualquer outra atriz no lugar e isso
é problemático quando estamos a falar de um dos maiores nomes da indústria de
Hollywood.
James Corden é,
talvez, o maior destaque positivo de todo o projeto. Mesmo no papel de Fada
Madrinha desta Cinderella ativista, Corden soube trabalhar o tom do seu
personagem de forma a que parecesse um ponto de coerência dentro de todo o
elenco. Por mais que sejam notórias algumas parecenças com Cam de Modern
Family, em que algumas das expressões parecem ter sido copiadas da
interpretação de Eric Stonestreet, este foi o elemento a quem os autores se
esforçaram para entregar um melhor background, num trabalho construído com
pinças para que o exagero seja apenas o necessário para ser representativo e
não uma fonte de ruído dentro de cada take. Mas porque é que nele correu bem e
noutros não? Pode parecer estranho, mas há momentos em que a espontaneidade de
Corden parece sobressair para lá das linhas de texto, e quem conhece o trabalho
do ator de outros projetos consegue entender isso, da mesma forma que se notou
em Into The Woods e até em Cats. Talvez o improviso tenha sido a
maior razão para nos fazer amar uma personagem dentro de cenário que esteve
perto de cair no ridículo. Vale, ainda, a pena mencionar Andrew Rannells, que
depois de ter conseguido bastantes elogios em The Boys in The Band,
também não chega a entregar uma prestação bombástica aqui, mas consegue
sobressair mais que Nicole Kidman e roubar alguns holofotes que nos deixam com vontade
de o ver noutros contextos. É um intérprete que casa bem com o padrão que Ryan
Murphy imprime na grande maioria das suas produções e poderia ser uma agradável
surpresa vê-lo num papel mais sério e fora da caixa numa temporada de American
Horror Story, seria um futuro Zachary Quinto em potencial. Para terminarmos
o casting falta referir Kerry Washington e sobre ela apenas se pode
dizer que ainda bem que Scandal existe para nos provar o seu talento,
porque aqui foi mais uma cara desvalorizada num papel altamente infantil
completamente desvirtuada no final da longa-metragem.
É tudo negativo?
Não. Na técnica pouco falha e o guarda-roupa facilmente consegue conquistar
indicações em prémios importantes para a indústria. Mas infelizmente depois de
uma sequência de narrativas abismais, Murphy falhou. The Prom redefine o
ditado que diz que nem tudo o que reluz é ouro e neste caso a balança pende
muito mais para uma avaliação negativa que positiva. É claramente o projeto de
sonho de Murphy e ele conquistou a confiança da Netflix e de grandes estrelas
para lhe dar corpo mas no final das contas talvez ainda não fosse o momento
para isto, talvez o guião precisasse de uma profunda revisão que definisse qual
é o caminho que quer seguir em vez que cair no risco absurdo de tratar com
demasiada ligeireza temas verdadeiramente importantes e de não deixar de estar
em cima do muro na hora de decidir entre ser adulto ou adolescente, cómico ou
dramático. Há uma enorme falta de identidade que se vai agravando ao longo de
todo o filme e que culmina numa cena final que nos apresenta um baile que
passou de ter como tema a inclusão para passar a ser uma celebração dedicada a
adolescentes LGBTQ+, com os mesmos quatro alunos heterossexuais a servirem para
fazer número no ecrã. Isto tudo se ignorarmos a rapidez com que a personagem de
Kerry Washington deixa de ser a principal causadora do rebuliço que gerou esta
trama para se derreter com o amor da filha por outra mulher num espaço de
curtos segundos, com direito a um abraço de incoerência que serve de prova à
falta de maturidade do texto. The Prom pode ter ecos nas premiações, mas
para já parece arrecadar apenas o galardão de desilusão do ano. Volta Ryan de Ratched
e Hollywood, precisamos de ti!
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