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Firgun: "É desprezível a conclusão de que a cultura é só para alguns, assim como fazer arte não está ao alcance de todos"

Foto: Direitos Reservados

Chama-se Lécio Dias mas é conhecido no meio artístico como Firgun, o nome do seu projeto musical. Tem em António Variações, Zeca Afonso e Sam The Kid três das suas maiores influências artísticas e conta com dois álbuns independentes lançados - "Magnolia", totalmente cantado em inglês, e "Gato Bravo", com temas interpretados na nossa língua. O Fantastic falou com o interprete sobre o seu percurso musical, que começou quando era muito novo e ficámos a conhecer também as suas expectativas em relação ao seu trabalho como cantor e autor.

Uma paixão pela música que começou na sua infância

"Quando tinha cinco anos, os meus carinhosos pais decidiram colocar-me na música extra-curricular da pré-primária. Descobri isso há pouco tempo. Com 9 anos, na transição para o 5.º ano escolar, entrei no ensino articulado, formando-me em contrabaixo clássico, mas tendo sido a minha primeira opção o saxofone", começa por nos contar Firgun.

Lécio confessa que a música foi um elemento relevante no seu crescimento, tendo inicialmente sido cativado "por força do Hip-hop português (enquanto movimento) e do Rap (enquanto estilo musical)", mas também as influências do deu tio Nuno "foram decisivas para que começasse a escutar mais música", com o Youtube como ferramenta fundamental para tal.

"A transição para o Rock veio com a influência do meu último professor de Formação Musical, Miguel, que me apresentou o álbum “The Wall”, dos Pink Floyd. O impacto dessa introdução ao Rock foi tal, que rapidamente se tornou numa obsessão", continua. "Por incrível que pareça, a música aguçou-me o espírito crítico e estimulou a minha vontade em saber mais e melhor. Isso levou-me ao pensamento autodidático que hoje define tanto a minha personalidade", esclarece ainda Firgun.

Foi na entrada para a adolescência que surgiram nas primeiras bandas em que participou. "A rebeldia cresceu na minha ânsia de tornar-me uma rockstar e de viver excessos. Senti que o limite chegara, após uma sessão de estúdio, na qual tentei agredir um dos elementos integrantes da minha última banda, Limbus. Cheguei à conclusão de que éramos mais violentos, sendo algo que se refletia na minha música e no estilo de vida que escondia dos meus pais", explica o músico ao Fantastic.

Lécio assume ainda que passou por uma fase de "revolta e a frustração", que acompanhou ainda o momento em que, para ter o seu primeiro equipamento musical, teve que se esforçar e trabalhar bastante. "Sendo árbitro de futsal desde os meus 14/15 anos, o pouco que conseguia tirar da arbitragem e dos torneios permitiu-me pagar algum equipamento e suportar algumas sessões de estúdio com a banda. Atualmente, sempre que entro em estúdio, controlo-me para não pensar nos sacrifícios que fiz para poder estar onde estou. Para ensaiar com os Limbus, caminhava uma média de 10 quilómetros, chegando a fazê-lo diariamente. Na altura, os meus pais não me apoiavam muito com a ideia de ser músico, acumulando-se a realidade laboral do meu pai, que tendo um trabalho noturno, não sentia tanta disponibilidade", conta-nos Lécio Dias.

Todo este percurso, pautado por alguns momentos mais dolorosos acabam por ser bastante valorizados por Firgun, nomeadamente todos os quilómetros que percorreu carregado de equipamento. "Os Limbus terminaram num dia próximo do meu 18.º aniversário, estando eu a estudar em Coimbra. O concerto de despedida aconteceu no Cineteatro António Lamoso, tendo sido notória a rutura da banda. Cheguei a casa de madrugada, após o concerto, tendo vindo a pé; a última caminhada, como gosto de acreditar. A banda concluir-se-ia num grupo de excelentes músicos que apreciavam o seu individualismo, mas que não nutriam uma base de confiança e de reciprocidade", confessa ainda.  


O início do projeto "Firgun"

O projeto Firgun surge num momento em que se dá uma ruptura na vida de Lécio Dias. "A maturidade é, na verdade, um processo gradual de autoconhecimento e de desenvolvimento da consciência identitária social (conhecer-me melhor perante mim mesmo e perante os outros, no fundo)", explica-nos, adiantando ainda que o Firgun nasce depois de uma "adolescência depressiva 'pré-ensino superior' ociosa e flagrante, repleta de arrogância e de impulsividade minhas, que não me trouxe nada de valioso... sendo que só tomei conta da minha falta de bom senso quando senti que estava a prejudicar os que amo". Lécio confessa, por isso, que o "Firgun nasce para combater esse mesmo eu destrutivo" que nascera no seio da sua imaturidade. "Nasce como aquele que eu procuro ser em resistência à besta que fui", explica ainda.

“Firgun” significa, em hebraico moderno, o sentimento de “orgulho, satisfação e prazer pelo sucesso e bem-estar dos outros”, aquela que Lécio Dias considera ser a sua verdadeira  certeza. "Quem me conhece verdadeiramente, sabe o quão minimal se está a tornar a minha visão identitária. Vivo em torno do prazer dos que atingem o que procuram, mas não nego a minha frustração para com uma realidade cada vez mais dissonante, ainda que saiba que esta insatisfação faz parte de uma fase menos boa da minha vida. Ainda assim, “Firgun” all the way! Quero atingir a máxima que o próprio sentimento defende e deixá-lo invadir toda a minha compreensão intrapessoal e interpessoal", explica-nos o autor.

Do seu percurso fazem parte, até ao momento, dois trabalhos:“Magnolia”, o seu primeiro álbum, seguindo-se “Gato Bravo”, o mais recente projeto. Mas antes deste lançamento, Firgun foi obrigado a passar por alguns sacrifícios em prol da sua carreira. "As pessoas não imaginam o sacrifício que eu e a minha mãe fizemos por esse trabalho. A minha mãe financiou grande parte da edição do “Lotus” com algum dinheiro que ia poupando. Agradeço esse gesto de amor da parte dela. Sem esse contributo, nunca teria conseguido concretizar o meu sonho de editar um disco", conta-nos o jovem músico.

Ainda assim, todo o investimento pessoal e monetário não teve a merecida recompensa. "A utilidade prática dessa edição foi praticamente nula. Em 50 cópias, devo ter conseguido vender pouco mais de metade, tendo oferecido o resto a fãs do meu trabalho que me foram acompanhando nos vários concertos que dei. Felizmente, senti que a minha disponibilidade para tal oferta, partia da necessidade de satisfazer algo maior que a minha necessidade financeira, o apoio incondicional dos que me acompanham desde o início", esclarece.


"Partindo desta concretização prática do meu trabalho, o objetivo desta mesma edição era a de financiar um segundo EP, “Magnolia”, que só se tornou um álbum após uma crítica brasileira. O “Magnolia” sempre foi um EP; simplesmente cansei-me de estar sempre a dizer às pessoas que não era um álbum e deixei que fosse o que os ouvintes quisessem. Como não tinha dinheiro para esse mesmo EP (um custo de aproximadamente 250 euros), tive que desfazer-me de alguns bens, pois, só assim poderia suportar o investimento. Deixo um agradecimento especial ao Michael “Mic” Ferreira e ao  Carlos “Prisma” Duarte - sem esses dois senhores, nunca teria conseguido editar nada!", continua.

Ainda assim, "Magnolia" não correspondeu às expectativas e, na opinião do cantor, muito se deve ao facto de ter sido "recusado por N editoras" por não ter "investimento suficiente para promoção, edição física e desenvolvimento com banda". Mas tudo isso não foi suficiente para que Lécio desistisse. "Eu não censuro esse destino; não sinto que seja uma obra imatura, mas é uma clara obra trabalhada sob pressão, sem grande financiamento e sem a expressão identitária que eu gostava de ter apresentado, mas isto faz parte do desenvolvimento artístico. Em contrapartida, o álbum (chamemos-lhe assim) teve bastante impacto a nível internacional: Inglaterra, Brasil, Itália, Eslovénia, entre outros. A campanha de streaming fortaleceu a minha visibilidade e abriu-me portas a contactos inesperados e super interessantes", acaba por revelar ao Fantastic.

Surge depois "Gato bravo", um álbum que "surge como uma resposta a esse mesmo desprezo" que Firgun sentiu no nosso país, numa altura em que, segundo o próprio, a sua expressão artística no nosso país "era irrisória", até ao momento em que trabalhou o tema Só Por Mim com o Bernardo Costa. "Esse tema chamou à atenção para a necessidade de metamorfose linguística e artística. É incrível o impacto que esse único tema teve, partindo da premissa de que a minha anterior agência tinha recusado investir no mesmo por não ver potencial. Felizmente, resultou e muito bem, tendo sido uma benção conhecer o Tiago no RFM Somnii. Reiventarei o álbum no futuro, pois sinto que a ousadia da abordagem se perdeu na qualidade final do produto. Este álbum sim, colocou-me nas novas caras do indie português, descentralizando-o de Lisboa, Porto, Leiria e Aveiro", explica.

Assim sendo, "não há uma razão que justifique a ordem destes dois álbuns", uma vez que, para Lécio, "apenas existe uma desordem ético-laboral" da sua própria expressão, aterrorizando a sua nova abordagem. "O mesmo álbum que me agarrou a uma nova pop portuguesa (que ainda não tem expressão o suficiente para ser mais que indie), condena-me à incerteza de não ser um artista suficientemente alternativo para os alternativos, nem suficientemente pop para os comerciais. O que mais me revolta nisto tudo? O discurso do 'Indie é um estilo de vida!'; meus caros, eu moro numa vila chamada São João de Ver... Se quero fazer música fora de cena, só mesmo de forma independente!", conclui. 


Ao ouvirmos trabalhos de Firgun, conseguimos escutar, de uma forma figurada, uma série de sentimentos, tais como a melancolia, a tristeza, a saudade e, como contraste, a euforia. "As duas primeiras são resultado da depressão que me acompanhou durante muitos anos. A saudade é algo mais nostálgico e menos material do que aquilo que parece. Sinceramente, cansei-me da opulência sentimental", explica Firgun. "Sempre me inspirei nas experiências dos outros e naquilo que partilhavam comigo. O meu trabalho sempre foi mais deles do que meu, devendo-lhes algum mérito quanto às ideias para as minhas letras", confessa o Fantastic.

"No 'Gato Bravo' sente-se uma certa abordagem tóxica, que eu reconheço ser resultado da vida boémia universitária, mas respeitando aquela que era a minha condição constante: ainda que rodeado de gente, sentia-me sempre sozinho. Quando aprendi a viver comigo, a minha mensagem mudou. Preocupo-me mais com o que os outros sentem e menos com o que os outros vivem ou têm por experiência", continua por explicar Firgun. 

"Atualmente, o novo álbum que está em desenvolvimento tem muito mais de social e de político. Partindo de uma premissa sociológica, abordo a liberdade sexual, os relacionamentos tóxicos, a formalização da prostituição, o combate à marginalização económica e a decadência consumista que se torna implícita na própria forma como lidamos com as nossas próprias relações, por força dessa desgraça engraçada que é a aprovação social. Inspirar-me-ei sempre no bem estar dos outros, quer seja por querê-lo, quer seja por vê-lo; algo que se torna difícil nos dias que correm", acredita.

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Foto: Direitos Reservados

 

O regresso aos palcos em época de pandemia

Embora já tenha tocado em palcos como o RFM Somnii, Sofar Sounds (Coimbra) ou #Saiprarua (Aveiro), com concertos em 2019, para Firgun o contacto direto com o público nos concertos não é o mais importante. "Tocar ao vivo é essencial para o estímulo do público e para a aproximação desse mesmo núcleo, mas não é algo que me iluda muito. Infelizmente, a volatilidade do mundo das artes é algo inegável, sendo potenciada pelo consumismo. Hoje és a grande cena, amanhã és carta fora do baralho. As modas são algo destrutivo para as carreiras, sem dúvida!", começa por nos explicar.

Mas Firgun continua, esclarecendo que isso não invalida que dê o seu melhor nos concertos. "Quando toco ao vivo, dou o máximo dos máximo para oferecer uma excelente experiência, mas a reciprocidade nem sempre existe. Nem sempre és desejado pelo público que te ouve, sendo que acabas por ser uma escolha de quem representa o espaço. Às vezes, és surpresa, outras vezes, és aquele que está a estragar a noite... É necessário aprender a lidar com isso! Já não é algo que me incomode... Quando tenho que assumir o profissionalismo, eu faço-o e dou o melhor de mim! O Sofar Sounds - Coimbra foi uma das minhas melhores experiências de sempre", acaba por revelar ao Fantastic.

Apesar de tudo, o cancelamento dos seus concertos em Lisboa, os primeiros que iria ter na capital, acabou por ser complicado de gerir. "Fiquei destroçado. Seria a minha primeira vez ao vivo na capital e sei que tenho centenas de ouvintes na cidade. Acredito que teria sido uma excelente vivência para o meu pequeno mundo, mas outras oportunidades surgirão", confessa.

O estado da arte e da cultura em Portugal é outro dos grandes problemas que preocupam a maioria dos artistas e, como é óbvio, Firgun não é excepção, embora considere que todas as dificuldades vão muito para além da pandemia. "Eu não quero ser o patinho feio que constata a óbvia decadência de um país que se esforça para desprezar a cultura. Os incentivos estaduais são cada vez menores, os circuitos municipais estão cada vez mais viciados e a disponibilidade do cidadão médio prende-se com a cadeia de consumo rápido que a própria figura incorpórea do mercado oferece. Na realidade, o nosso contexto só veio demonstrar as fragilidades que a própria estrutura cultural portuguesa já vivia, mas potenciado-as. Só tomámos consciência dessas mesmas fragilidades, quando os viciadores, os “grandes”, demonstraram estar em maus lençóis", acredita Firgun.

"Não compactuo com causas que enriquecem a ganância dos outros e, na verdade, a conjuntura tem promovido ainda mais o separatismo artístico e a polarização dos financiamentos. É desprezível a conclusão de que a cultura é só para alguns, assim como fazer arte não está ao alcance de todos. Enquanto alguns se preocupam em manter a ostentação e o ócio, outros preocupam-se com as necessidades básicas (e falamos em quem cria, quem desenvolve, quem garante, quem promove, quem defende a arte e a cultura). Esta massa cinzenta que sofre indiscriminadamente a dor dos outros está a desconstruir a identidade sociocultural da expressão artística", explica ao Fantastic.

Quanto ao futuro, segue-se o novo álbum “Marialva”, que "surge numa conclusão muito ponderada" e que está prestes a ser terminado. "Este poderá ser o meu último álbum, sendo que isso dependerá da própria expressão cultural que o mesmo tenha. Ainda assim, se Firgun deixar o público, eu, Lécio, não deixarei de procurar ajudar a emancipação e surgimento de outros artistas e autores, na procura de contribuir só mais um pouco para esta coisa tão boa que é a liberdade de expressão", acaba por confessar o artista de Coimbra.