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COMING UP | The Morning Show

 


Estamos na época das fake news, ler e ver notícias voltou a ser uma necessidade e na mudança de paradigma que nos fez voltar à informação e à busca por ela torna-se urgente falar sobre jornalismo. O jornalismo é importante é por vezes não tão discutido pela maioria como deveria. A discussão é urgente e mesmo que usemos um drama fictício para abordar o tema, The Morning Show é a cereja que faltava. É a realidade para lá das câmaras na eletrizante azáfama da televisão, mas sobretudo é a série que nos ajuda a libertar uma dezena de temas que todos pensamos ou que todos dizemos na nossa “achologia” quotidiana. The Morning Show não se limita a ser uma boa série, é inteligente, elegante, é importante, e a lista de elogios podia continuar que seria sempre menor para a qualidade que temos aqui. Não é só mais uma produção, é provavelmente uma das melhores dos últimos tempos e que torna quase criminoso a falta de buzz que gerou por cá. Encontrar uma narrativa que consegue ser eclética ao ponto em que todas as personagens, todos os arcos nos tocam e mexem connosco é extremamente difícil. Se o jornalismo já por si é um tema que nos agrada? Até podemos entregar de barato essa justificação a quem critica a série, mas se há uma coisa que não se pode negar em The Morning Show é a capacidade de atravessar este universo encantado da TV de fio a pavio sem, nem por um segundo, apresentar uma polémica e a sua respetiva contradição. Meus senhores, o Coming Up de hoje é sério, porque o mundo também o é. Vamos estrinchar este drama e mostrar que a ficção nunca existe sem um fundo de verdade. 

Os lobbys, a desinformação, a informação passada da forma mais leve possível para não causar constrangimentos e as estrelas pré-fabricadas. Tudo isto faz de The Morning Show um cocktail de assuntos que estão no topo das conversas de café dos dias que correm. E não há branqueamentos aqui, do arranque ao fim e com um ritmo que nunca poderia ser menos que frenético porque trabalhar em televisão é uma corrida em contrarrelógio, em cada episódio há mais uma coisa a aparecer. É ficcionado? Sim, não podemos deixar de lado aquele registo de telenovela que atrai o público, mas, mais que isso, o cuidado do argumento em não encarar o espectador como um ignorante e motivá-lo a pensar no “e se fosse comigo?” só eleva ainda mais a fasquia. O discurso de Alex na entrega de prémios poderia acontecer na realidade? Bem, a resposta aqui é complexa porque em Hollywood nada é estático. E falando em Hollywood, The Morning Show não é simplesmente uma narrativa assente numa guerra de egos, eles existem sim, mas falamos muito mais de um dilema antigo: O jornalismo que busca pela verdade dos factos sem receio de expor o outro lado, o verdadeiro, doa a quem doer, aqui representado em todas as cenas por Bradley, é o velho padrão old school em que a Figura Pública sobressai à pessoa, em que se vendem valores em prol das audiências, e em que tudo é pré-fabricado para chegar com o objetivo que melhor serve a agenda. Alex é a representação dos estereótipos que todos colamos à industria de Hollywood, indústria essa que se envergonha e que raramente nos mostra a verdade para lá das câmaras, os guiões e os choros combinados, nesta série despojamo-nos disso, e é aí que assenta uma grande parte da verdade de The Morning Show.


Bradley é o rigor, o fôlego e a verdade do jornalismo no qual todos queremos acreditar, mas que sabemos que raramente acontece. Bradley existe precisamente para provar como neste meio ser aquilo que nós imaginamos que estas pessoas que através da TV nos entram em casa todos os dias é fugir da regra, do padrão. Não há assim tantas Bradleys, e por cá não temos um número exagerado de Alexs mas elas existem. A mecânica do mundo da produção está lá na correria dos corredores para quem à quiser explorar, sem receios. Fred é o mandachuva de uma indústria e a prova de como dinheiro e poder valem mais que o carácter no mundo dos negócios, nem Cory fica livre de culpas, aliás longe disso. Cory é um elemento sangrento de um tabloide, o vampiro que procura a próxima bomba para ver a morte do artista em direto, numa gestão louca que ele sabe que será assim, mas sem receio porque o escândalo vende e quanto mais espetáculo mais audiência, independentemente da validade ou necessidade de que isso aconteça, lembra-vos algum canal? É isso mesmo, esse nome que está debaixo da língua. E a partir daí só navegamos mais fundo no ambiente altamente tóxico, stressante, mas sobretudo trabalhoso, numa realidade que está a anos luz da nossa, mas que não deixa de ser uma meia verdade sobre o que é a produção de um show em qualquer parte do mundo. A luta pela verdade de Bradley é o grito do Ipiranga que grande parte dos jornalistas gostariam de dar, mas aqui entra o lado telenovela, no mundo real raramente os compadrios recaem sobre aqueles que defendem o lado correto. E quando defendem em grande parte dos casos poderemos estar perante um Cory. Cada medalha tem o seu verso, e vender às vezes é mais importante que informar. Porque informar por vezes é “chato” demais, e há uma boa dezena de diálogos de The Morning Show em que se fala disso. Ambiente verde? Quem quer saber? A coleção de óculos terá sempre muito mais views. A culpa? A culpa talvez seja da nossa falta de refinamento enquanto público para vermos o que realmente importa. 

Mas é tudo tão catastrófico ou terrível? Não. Aliás a própria trama procura explorar isso. Procura dizer-nos que cada história é diferente e que nada é tão estático assim, nem mesmo no mundo do espetáculo. O balanceamento tem de existir, para que a veracidade seja mantida. E o exemplo disso é que apesar de grande parte do plot principal se sustentar nas acusações de assédio de Mitch no trabalho, nada impede a equipa de autores de nos apresentar o caso de uma relação perfeitamente saudável que nasceu no local de trabalho. Porque é normal, até é quase banal que duas pessoas que passam horas a fio juntas se acabem por relacionar, por encontra naquele espaço um par. Há uma enorme preocupação em contar essa versão do factos porque não podemos criar de um momento para o outro um preconceito de que todos os casos são iguais e de que em todos os casos há uma má intenção por trás, faz sentido que assim seja na série é ainda ajuda a criar a consciência de que nem todos podemos desatar a ser uma Hannah e a destruir uma vida alheia baseada numa suposição. Por outro lado há um aplauso que tem de ser dado a quem trabalhou neste argumento o tema do #MeToo, se em Bombshell o resultado já nos tinha conquistado, aqui entramos num outro patamar em que a conversa entre Mitch e o realizador envolvido na onda de acusações chega a ser tão constrangedora que nos desperta uma raiva enorme, é visceral, é tão estupidamente próximo da realidade que mexe com as nossas emoções. Toda a curva de personagem de Mitch consegue fazer-nos perder a calma quando assistimos, numa atuação absolutamente fenomenal de Steve Carell, naquele que se arrisca a ser uma das suas melhores interpretações dramáticas de sempre.

Falámos de Carell e para falar do elenco de The Morning Show não podemos dizer nada que não se torne numa ode de elogios, mas não temos verdadeiramente por onde fugir. Claro que estamos perante atores que dentro da indústria já têm carreiras cimentadas, mas quantos artistas resvalam quando têm um grande papel em mãos? Não é o que acontece e podemos falar já de Reese Witherspoon que depois de já ter sido digna de nota em Big Little Lies aqui arrasa tudo e todos numa interpretação memorável é que a torna instantaneamente numa das atrizes favoritas de quem assiste a série, há um novo público para ela no streaming e ela agarra-o com a as mesmas unhas e dentes quanto as que a sua Bradley tem para chegar à verdade. Bradley poderia ser mais uma miúda rebelde ou uma jornalista meio frustrada meio sonhadora, mas é muito mais denso que isso, é pelo argumento que a sustenta, porém há um trabalho de construção que só em grandes produções de Oscar se encontra. Na contracena direta Jennifer Aniston prova que já está mais que na hora da academia olhar para ela com outros olhos sem o rótulo de F.R.I.E.N.D.S, as loucuras e bipolaridades de Cake estão em Alex, mas há uma bagagem na atuação que não se encaixa em nenhum outro trabalho que tenha feito antes, soberbo é um adjetivo baixo para o desempenho da atriz. A cena em que anuncia Bradley é forte, mas ela ainda se supera no episódio 6 e 10, o desequilíbrio emocional e a posterior revolta final são as vísceras do público transpostas no show, é o “ao vivo” ficcional que podia e devia ser real mais vezes para se abrirem mentalidades. Billy Crudup, Karen Pittman, Nestor Carbonell e Bel Powley são outros destaques que só arrasam nos seus spotlights e que comprovam o luxo de casting, mas há dois nomes que não merecem apenas ficar numa enumeração: Mark Duplass e Gugu Mbatha-Raw. Duplass e o seu Chip são um motor incrível desenhado milimetricamente à imagem do produtor que imaginamos por detrás de qualquer programa e vence-nos pela ingenuidade e pela integridade, quanto possível, ele agiganta-se a partir do capítulo 2 e o crescendo só termina no ultimo minuto. Já Gugu, de coadjuvante que facilmente seria engolida pelo elenco passou a um destaque absurdo e tornou-se numa das maiores injustiças dos últimos Emmys. O episódio 9 e 10 são eletrizantes e recheados de mensagens que não podem ser banalizadas. Hannah tornou-se num símbolo, um símbolo que esperemos que seja um choque tão grande no ecrã quanto na vida real. Os aplausos serão sempre poucos.

A este ponto já dá para entender que The Morning Show é uma produção essencial para colocar na lista de próximas séries. É isto é proposital, porque não estamos só a falar de mais uma série, estamos a falar de temas e mensagens que precisam ser vistos por todos, por todos aqueles que passam ao lado das notícias, por todos os que não abrem os links dos assuntos sérios. Se esta for a plataforma, então já estamos todos enquanto sociedade no lucro. Mas não se deixem enganar pela profundidade das questões, o ritmo é excelente e há linhas de textos para os amantes de todos os géneros. Há drama e comédia, mas é uns passos acima do comum. Para quem ainda acha que a Netflix e a HBO são as duas marcas de qualidade no streaming então é hora de dar uma chance à AppleTV+ de mostrar ao que veio. Entreter e informar são duas coisas que têm obrigatoriamente de estar de mãos dadas, não podemos deixar que nos esvaziem a inteligência e curiosidade apenas em prol de uma audiência que procura o choque, a bomba. Aqui é tudo compartimentado para nos dar melhor e ainda nos provar o quanto nós enquanto público podemos definir o que passa na televisão. Não é light, não é curto, mas seria um erro crasso ser de outra forma e mais tarde ou mais cedo vão dar por vocês a entender que uma hora de episódios pareceram minutos. É um vício, preparem-se para isso. Um mergulho ao jornalismo e à atualidade, mas que vem mais uma vez provar que a comunicação social é a rainha no tabuleiro de xadrez em que se jogam as nossas vidas. O mundo precisa de uma nova temporada e sinceramente este é um dos poucos casos em que ter a pandemia como pano de fundo não seria um choque, pelo contrário, só prometia superar-se ainda mais, se é que isso é possível!