COMING UP | A Generala
Foto: Armanda Claro / SIC (Divulgação) |
Para lá do peso da história verídica, A Generala consegue subir o nível e chegar ainda mais perto do núcleo denso que acompanha a trama de Maria Luísa. Não estamos simplesmente a falar de factos reais que parecem roçar a ficção mas de uma produção que promete trazer o debate do género para cima da mesa com um contexto histórico à cabeceira que lhe serve de motor e que volta a provar que os tabus de hoje são demasiado datados para a evolução que tivemos enquanto sociedade. Na primeira aposta, e julgando pelos capítulos que já foram disponibilizados, a OPTO SIC não procura só ser diferente, mas procura também aproximar-nos ao que de melhor se faz lá fora. A Generala é mergulhada no mesmo “Banho Maria” que nos aproxima dos dramas históricos que rendem Oscars, com a mesma envolvência e o mesmo tempo, de uma narrativa que não é feita a metro, mas que utiliza muito bem a régua e esquadro na hora de unir os pontos do sucesso. É para todos? É sobretudo para quem esteja disposto a ouvir vozes novas e que tenha a vontade de se aventurar num contexto denso enquanto saltitamos dentro de uma personalidade que se está a descobrir. Há surpresas em A Generala, mas mais que isso, há muito talento. A reunião entre técnica e elenco eleva cada episódio e já se entende o porquê de este ser o projeto ideal para o pontapé de saída do serviço de streaming. Entre o aspeto dos grandes sucessos europeus e as linhas rítmicas que jogam o xadrez dos silêncios de Hollywood, A Generala sai com nota de excelência e nós vamos dizer-te porquê em mais uma edição do Coming Up, fica para ler!
Facilmente podemos cair no erro de achar que esta é apenas mais uma série
histórica que nos leva a viajar para o passado, mas não. Em A Generala
está lá o passado mas serve a proposta de nos educar e de nos provar que
podemos fazer diferente e cortar com o óbvio, aqui essa viagem está lá mas
procura-se que ofereça um enquadramento para aquilo que é a verdadeira proposta
apresentada até agora: Entender como a sociedade moldou as atitudes desta
protagonista e o motivo pelo qual nos vamos agarrar dali em diante. É a
densidade psicológica da personagem que ao acontecer ali, naquela época, é mais
complicado ainda, mas que se pode estender a uma interpretação que nos dias de
hoje seria ainda, e tristemente, tão complexo como é visto nos flashbacks de
Maria Luísa. O centro dessa densidade que só nos faz desfazer em elogios na
hora de falar do argumento da trama pela sua luta indireta ou direta pela
representatividade, deve-se sobretudo à forma como tudo é amarrado na medida
certa com as cenas das comparações violentas da mãe com o irmão falecido, a
rigidez da visão do que é o comportamento que uma mulher deve ter, o bullying
e rejeição, a falta de afeição dos colegas de escola que estão longe de
entender as dificuldades de Maria Luísa para se encaixar nos padrões, tudo isto
e ainda a sacada genial de nos apresentar esta mulher como alguém extremamente
focada e inteligente. Convenhamos que o plano que nos é mostrado a partir do
segundo episódio não poderia esperar-se que o esquema engendrado de forma tão
minuciosa viesse de alguém que se ficava pela média. Mas com todas as
justificações do argumento só nos faz crescer, ainda mais, a dúvida sobre se
Maria Luísa tivesse convivido com uma mentalidade mais aberta teria sido
necessário cair na teia do crime? É ficcional, sim, mas sobretudo educativo
nesse ponto.
Foto: Armanda Claro / SIC (Divulgação) |
Com pouco tempo de ecrã nos primeiros capítulos, o magnetismo de Soraia Chaves
já rouba cada cena em que entra, pela crueza com que se entregou à realidade de
Octávio. Ela consegue romper com tudo o que conhecemos dela até agora, e a
feminilidade é absorvida pela melancolia que a deixa num estado de apatia que
nos desconcerta, que nos torna mais próximos daquela dor e da violência da
exposição que está longe de ser a identidade com que se reconhece. O trabalho
contínuo das duas atrizes, nas duas fases da ação, nota-se sobretudo nos planos
mais apertados que nos conseguem ludibriar e fazer-nos encontrar parecenças que
não existem entre Soraia e Carolina. Filmagens que seguem em muito o estilo de
produções espanholas que têm conquistado mérito na Netflix e que trazem para o
lado técnico a sensação de slow burn com os planos a preencherem os
devidos silêncios da história. É a orquestra perfeita, que se junta aos géneros
biográficos que têm feito sucesso nas premiações, em que não é sempre tudo a
correr, não há explosões em cena a todo o momento, a história vai-se
desenrolando à medida que os personagens a vão revivendo, mas sem esquecer a
chave mestra dos sucessos do streaming com os ganchos de produção
colocados nos locais certos para nos fazer maratonar a história. Não há
aquela sensação, que às vezes acontece por uma questão de habituação, de que
estamos a ver um episódio de novela que foi cortado para série, não, em A
Generala cumpre-se a proposta com o texto a ter um princípio meio e fim que
não perder tempo com o acessório mas dedica a duração a fazer-nos entender quem
é cada um dos peões. São géneros muito diferentes, mas lembra um pouco a forma
como a narrativa de Sucession nos é contada, aliás podemos arriscar a
dizer que A Generala está no limbo entre as marcas da fórmula de sucesso
da HBO e os diferentes êxitos indies espanhóis do catálogo da Netflix.
Carolina Carvalho é a agradável surpresa do elenco, a provar-se como uma
confirmação e a deixar de lado o título de promessa. A entrega da atriz é
sentida desde o início. Há uma mistura de sensações que nos agarra, e que passa
longe de uma típica interpretação mais masculina. A primeira fase da história é
uma descoberta de talento, com as cenas em que a personagem vai entendendo o
seu destino a valerem menção pelo forte apelo que a atriz traz para a história.
Não esmorece ao lado de grandes nomes e de rapariga carregada de sonhos, mas
com muitos traumas à mistura nasce Octávio, um desafio difícil, mas que para
quem assiste e se queira realmente deixar envolver pelo enredo consegue comprar
a verdade. Os pormenores da mudança de voz foram notados, a trama faz uso dessa
questão, porém mais que isso é a pose que cativa, a maneira como ela não perde
o jeito feminino de um momento para o outro, mas como ao mesmo tempo consegue
convencer quem está ao redor de que é um homem. Não se lhe pode pedir que faça
uma transformação geral, aliás a premissa da personagem é exatamente a de uma
mulher a tentar comportar-se como um homem, e não é uma mulher qualquer.
Recuando às justificações que o texto nos oferece, esta Maria Luísa foi criada
sob o estigma convencional do papel da mulher, com tudo o que tinha direito,
incluindo a postura do ballet e o guarda-roupa que puxava pelo lado
sensual da sua forma física. Desconstruir tudo isto sem se tornar banal ou
demasiado ficcional é uma tarefa árdua, mas Carolina desembaraçou-se na
perfeição, com uma atuação que a eleva a um novo estatuto dentro das produções
nacionais.
Foto: Armanda Claro / SIC (Divulgação) |
Ver Carolina Carvalho e João Jesus dividirem contracena é o mesmo que assistir
ao futuro a acontecer à nossa frente. Tal como elogiámos a protagonista, João
Jesus sai da trama de A Generala sem mácula e também ele com um papel
árduo entre mãos. Interpretar um homossexual expansivo é um risco gigantesco, é
o perigo de destoar da trama, de sobressair pelo contexto, mas não é nada disso
que acontece. Na pele de Artur, o ator segura o limbo entre o exagero e a
representação real de um grupo de pessoas, com o encarnar do lado artístico a
ter leves lembranças da interpretação de Ana Nave em Snu, isto só para o
compararmos com um exemplo nacional, porque se formos mais longe a versão de
Artur de João Jesus casa na perfeição com a representatividade apresentada no
recente êxito da Netflix The Boys in The Band. É a contracena que
faltava para tornar tudo mais credível e tangível. No meio de todo este
rebuliço, o meio artístico, conhecido por estar à frente dos julgamentos do seu
tempo, foi uma saída de mestre do argumento que só ajudou a que toda a história
e toda a autodescoberta de identidade ganhasse ainda mais contornos, que
merecem ser aplaudidos porque nunca é demais. A cena em que Maria Luísa se
confessa a Artur é impactante, e nestes dois episódios talvez seja aquela que
serve para nos prender a ver até onde vai parar esta farsa.
De Anabela Moreira, que entrega mais uma atuação arrasadora com um discurso que
parece vir do interior e suplantar as linhas de guião como acontece na cena em
que castiga Maria Luísa obrigando-a a rezar, até Vítor Norte, que de volta aos
traços de vilão dá mais uma vez um show de interpretação, todo o elenco
consegue superar-se em cada frame, e isso já diz muito sobre a qualidade
do produto que aqui temos. Acresce a isso a originalidade do guião em trazer os
paralelos de uma autêntica tragédia shakespeariana para este contexto e
a menção aos mitos gregos que caiu que nem uma luva na eloquência do texto.
Vale ressalvar a técnica de execução, que nos deixa encadeados, e que até se
aceita que não agrade a todo o tipo de públicos, mas que certamente vai encher
os olhos dos grandes fãs de biografias do cinema americano. Não estamos tão
longe quanto pensamos de chegar aos altos patamares de produção dos gigantes e
nesta primeira aposta a OPTO SIC parece encaixar-se mais na linha premium das
séries da HBO, com cenários e elencos que saltam à vista. Será que o budget aqui
fez a diferença? É que apesar das boas produções nacionais que temos tido, como
são exemplos algumas das séries da RTP, é raro saltar à vista do público um
cuidado tão extremado com o mínimo detalhe como acontece em A Generala.
Se a qualidade daqui para a frente seguir este caminho então sim, há espaço de
mercado para este novo serviço de streaming. Talento há, basta saber
conjugar bem e o resultado será tão bom como este. Dá vontade de ver mais e
fica a nota de que um lançamento de episódios à moda da Netflix neste caso só
daria ainda mais realce aos ganchos finais, que até então se provaram capazes
de rivalizar com os seus concorrentes do género. Esperemos pelo final e por
mais cenas de Soraia, queremos ver as consequências de tudo isto no presente da
série. Estamos presos e vocês?
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