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Viajar Porque Sim #13 | Um outro Algarve


Algarve é geralmente sinónimo de Verão, praia, férias, e muitas vezes também de confusão. E no entanto, esta nossa região solarenga tem muito mais para oferecer do que apenas mar e belas praias. Tem temperaturas mais amenas durante todo o ano, o que a torna ideal para férias ou fins-de-semana fora da época alta. Tem belas paisagens, bem melhor apreciadas quando não estão cheias de gente. E tem séculos de história e uma cultura própria à espera de ser descoberta. No sotavento algarvio encontramos um outro Algarve: tranquilo, bonito, turístico sem exageros, onde se come bom peixe e marisco numa esplanada sem pagar demasiado, onde ainda se houve falar mais português do que outras línguas, onde o ar é morno e confortável. É o “meu” Algarve preferido, e é por aqui que hoje vos levo a passear.

 

A Ria Formosa estende-se desde Faro até Manta Rota e é uma das áreas mais fascinantes e ricas em biodiversidade do sul de Portugal. Aqui as praias têm sempre espaço para mais alguém, a paisagem muda consoante as marés, e ainda se vêem pescadores e casas tradicionais. Mesmo no pino do Verão, o ritmo de vida nas localidades é mais relaxado e menos confuso.

Situada em plena Ria Formosa e atravessada pelo rio Gilão, a cidade de Tavira é o símbolo de tudo o que o Algarve tem de melhor. Desde muito antes da fundação de Portugal, aqui viveram fenícios, turdetanos, romanos, cartagineses, árabes e judeus, e esta mescla de culturas deixou marcas. Conquistada definitivamente para a coroa portuguesa em 1239, recebeu o primeiro foral em 1266. A importância estratégica do seu porto fez de Tavira uma localidade-chave na defesa da nossa costa sul e na expansão portuguesa para o território africano. Elevada a cidade em 1520, Tavira festeja este ano o seu 5º centenário. O património arquitectónico que subsiste até aos nossos dias, tão rico e miscigenado como a sua história, faz dela um dos melhores exemplos de uma cidade mediterrânica fortificada, e esta é uma das razões pelas quais Tavira é a representante de Portugal na Dieta Mediterrânica como Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

É uma cidade para conhecer a pé, por isso o carro pode ficar num dos parques de estacionamento que existem quase à entrada da cidade, um de cada lado do rio, para quem vem da N125. Seguimos pela margem do Gilão, onde as casas têm escadas que tocam na água quando a maré sobe, mas ficam surrealmente suspensas sobre o nada quando o leito do Gilão se esvazia. Cruzamos a Ponte Antiga, que dizem ser romana, passamos pelas arcadas da Praça da República e subimos as escadinhas até à Igreja da Misericórdia, e depois até ao Palácio da Galeria e ao Castelo, que esconde no seu interior um encantador jardim e é miradouro privilegiado sobre a cidade. O branco rodeia-nos, só quebrado de vez em quando pelas cores da pedra, pelo amarelo-vivo que nos surpreende em alguns edifícios, ou pela paleta multicolorida de roupas a secar ao sol.




Ao lado do Castelo, os volumes irregulares da lindíssima Igreja Matriz de Santa Maria, que terá sido construída no século XIII sobre uma antiga mesquita. O aspecto actual desta igreja demonstra uma multiplicidade de estilos arquitectónicos, sobretudo Manuelino, Barroco e Neoclássico, resultantes das várias alterações de que foi alvo ao longo dos séculos.

Descemos pelas ruelas, novamente ao encontro do rio, para visitar o Jardim do Coreto. O nome já desvenda o ex libris deste jardim: um magnífico coreto octogonal, exemplo brilhante da arquitectura do ferro oitocentista. Construído numa fábrica do Porto em 1889, teve de ser transportado para Tavira por via marítima. Outra atracção maior do local são os engraçados cágados que vivem no pequeno lago que rodeia este coreto. Logo a seguir ao jardim, o Mercado da Ribeira, construído em alvenaria mas com estrutura no interior também em ferro trabalhado e alguns elementos em cerâmica, cuja função principal de abastecimento foi substituída pela de espaço comercial e de restauração.




Continuamos ziguezagueando pelas ruas estreitas, ladeadas de casas tradicionais de recorte antigo, até chegarmos às salinas. Ao lado, uma enorme chaminé da antiga fábrica de conservas chama a nossa atenção, paredes-meias com o imponente Convento das Bernardas, agora transformado em hotel. Andamos mais um pouco até encontrarmos por fim a harmoniosa Ermida de São Sebastião, de raiz medieval com toques barrocos. Diz-se do mártir São Sebastião que é advogado contra as epidemias e os contágios – o que quer dizer que é o santo mais adequado a quem apelar nos tempos que correm…



Na gastronomia da região, o peixe e o marisco têm, como é óbvio, lugar de destaque. As minhas preferências neste campo vão para a sopa de peixe, o mexilhão ou o lingueirão ao natural, ou o bife de atum. Mas a doçaria não lhe fica atrás, confeccionada com amêndoa, gila, figo e alfarroba – o difícil é não ceder à tentação.


Embora não faltem restaurantes, bares e pastelarias ao longo de toda a Ria Formosa, a próxima paragem vai ser em Cabanas de Tavira, onde existe uma impressionante quantidade de restaurantes na rua marginal, agora dotada de um passadiço com vista para a ria. A minha sugestão? Provem as pataniscas de polvo e o arroz de coentros do restaurante Noélia & Jerónimo, e depois digam-me se não são uma delícia. Regalar o estômago com boa comida e os olhos com a bela paisagem é uma combinação imbatível.




Seguimos para Cacela Velha, que os portugueses e as redes sociais parecem ter descoberto no Verão que há pouco terminou. E esta recém-adquirida popularidade é bem merecida, pois todo o conjunto paisagístico da aldeia e da ria aos seus pés são uma delícia para os nossos olhos. Os caprichos das marés desenham mapas na areia, que vão mudando ao longo do dia e consoante a posição do sol, pontilhados por pessoas e barcos. A aldeia, pequenina e praticamente inalterada desde que a conheço (já lá vão mais de duas dezenas de anos…), mantém a capacidade de me desvendar, a cada visita, um recanto ou pormenor em que ainda não tinha reparado. E as muralhas do Forte escondem um segredo que só alguns felizardos conhecem: a beleza da ria em noite límpida de lua cheia.




A seguir a Cacela Velha, a ria termina e o areal estende-se, ininterruptamente, por 13 quilómetros. Manta Rota e Altura já perderam alguma da sua genuinidade mas ainda não se converteram – felizmente! – ao turismo de massas, a Praia Verde passou de enorme pinhal ignorado a estância de luxo, e Monte Gordo é uma amálgama de prédios que é melhor ignorar, a nódoa no fino pano do sotavento algarvio.

E chegamos a Vila Real de Santo António, a extremidade sudeste do Algarve e do país, encaixada entre o rio Guadiana, a extensa zona arborizada a que chamam Mata Nacional das Dunas, e o Sapal de Castro Marim. Do lado de lá do rio, a não muitos minutos de barco e menos ainda de carro, vemos Espanha, mais precisamente Ayamonte. Os pontos em comum entre as duas localidades não são muitos, e isso deve-se essencialmente à figura polémica que conhecemos como Marquês de Pombal. De facto, até 1774 a única localidade que defendia a nossa fronteira naquela área do Algarve era Castro Marim. Para reforçar as nossas defesas numa época de grandes mudanças, decidiu D. José I criar uma outra cidade na região, e incumbiu o seu super-ministro de executar essa tarefa. À semelhança do que havia feito com Lisboa, o Marquês de Pombal decidiu criar uma cidade organizada em blocos de edifícios baixos, com dois pisos e mansardas, separados por ruas e avenidas traçadas a régua e esquadro em ângulos de 90 graus, configuração que se mantém até hoje mesmo nas zonas mais recentemente construídas. De notar que a cidade foi erguida na totalidade em tempo recorde para a época: apenas dois anos.

O coração de Vila Real de Santo António é a icónica Praça Marquês de Pombal, com o seu obelisco central – que homenageia o Rei e o próprio Marquês – a cumprir a função de sol, à boa maneira iluminista, do qual irradiam no chão faixas alternadas de pedra branca e negra. Em volta do quadrado central há laranjeiras e bancos de repouso, e nos edifícios que a limitam, tal como nas ruas imediatamente adjacentes, há um sem número de esplanadas e lojas de várias espécies. É aqui que encontramos grande parte da animação da cidade, sobretudo nas horas de menos calor, e é também a partir daqui que começamos a explorar as ruas pedonais em redor, com as suas casas brancas ou de cores suaves que ainda mantêm, na sua maioria, a traça original.

Vila Real de Santo António desenvolve-se, de sul para norte, paralelamente ao Guadiana, do qual apenas está separada por uma grande avenida, outro dos sítios favoritos para passear na cidade. Os passeios largos são de calçada portuguesa, com desenhos que replicam os motivos geométricos tradicionais em pedra das fachadas das casas. Ao longo da avenida, as palmeiras alternam com candeeiros brancos futuristas, há canteiros com relva e flores, bancos de jardim, quiosques e toda a parafernália habitual de uma zona ribeirinha. Ao lado do porto de recreio, uma escultura de João Cutileiro, também branca, retrata em modo modernista o omnipresente Marquês.


              

É aqui, nesta cidade “a céu aberto”, jovem pelos padrões nacionais e tranquila pelos padrões turísticos, que termina este passeio pelo outro Algarve. Há muito mais a descobrir por estes lados, mas as coisas boas devem ser saboreadas aos poucos – porque assim teremos sempre motivos para voltar.

Boas viagens!

Ana CB / Outubro 2020
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