COMING UP | Bom Dia, Verônica
Todos nós na
nossa vida, seja na vivência pessoal ou nas notícias, já esbarramos com casos
de violência doméstica. Na busca por justiça e verdade, Bom Dia, Verônica
é um aviso sobre o que se passa na porta do lado, sobre o que está para lá da
pele pública dos agressores. Há duas perspetivas presentes nesta nova série da
Netflix: há muito de ficção que serve de ajuda ao ritmo da série, mas é o peso
do realismo de algumas cenas que acaba por conquistar e tornar esta trama em algo
tão urgente. Do lado da vítima até ao agressor, com a polícia, a justiça, a
corrupção e incapacidade de lutar contra um sistema cheio de falhas como temas
adjacentes, esta história é um bom retrato de violentos crimes que ouvimos nas
notícias, mesmo que tudo seja embrulhado com uma lógica de um CSI. Há
uma linguagem de série norte-americana, porém ter o Brasil como cenário só
ajudou a entendermos e absorvermos melhor a credibilidade do que nos é contado.
Não é de hoje que ouvimos as mais inexplicáveis histórias de mortes terríveis,
de casos de violência doméstica que acabam em tragédia, de casos de violação
que deixam consequências para a vida, dos perigos dos sites de encontros e do
quão importante é, cada vez mais, ter cuidado com o terreno em que pisamos. Bom
Dia, Verônica é um gatilho, é um choque, mas é tão dura e macabra quanto
uma página de jornal. Tudo isto nesta edição do Coming Up.
Vamos à parte
mais profunda e real da história. Por mais que todo o surto psicótico de
Brandão nos pareça uma típica história de telenovelas. Há coisas ali que são
reais, é que basta ver as páginas de um qualquer jornal para entender isso. A
forma como Eduardo Moscovis conduziu o seu personagem nos limites da loucura
sem deixar de transparecer em público como uma pessoa equilibrada foi um dos
grandes acertos, ao qual se acrescenta a forma como tratou Janete nos momentos
a dois e até mesmo nos seus episódios de violência. Por mais raiva que passasse
para quem assistia ele teve constantemente a postura do arrependido, daquele
que diz que é uma vez sem exemplo, que não volta a acontecer e que tem até um
pouco de vergonha e pudor de abordar o mal que fez. Este é o arquétipo do
perfil de um agressor, este é o homem que está no ecrã, mas que existe ao virar
da esquina na vida real, com todas estas fases e devaneios. Destaque para o
argumento lhe ter dado um cargo de poder, não é inédito, há dezenas de obras
que já colocaram um agressor nesse mesmo cargo de poder, mas é importante para
servir de prova à sociedade de que este tipo de situações não têm
necessariamente que estar relacionadas com um classe mais baixa ou sem estudos.
A violência existe, e pode estar em qualquer família. O porte físico do ator
denunciou a sua índole cedo, mas é bom assistir a um guião que dá a volta por caminhos
menos óbvios é que aqui conseguiu entregar uma coisa diferente do que um
simples homem com cara de mau.
E saltamos para
Camila Morgado, a vítima. Ela que é, também, um perfil estereotipado da vítima
submissa sem força para se soltar e que está tão traumatizada por se sentir um
falhanço em sociedade que a vergonha de denunciar é, às vezes, maior que o
próprio medo. Há vários momentos em que ela tem os comportamentos padrão que
ouvimos em várias entrevistas. Ela é crente de que há amor, de que ele a vai
fazer feliz, de que ela é a culpada. Aliás é muito interessante ver como a
série trabalha esse sentimento de culpa, porque ajuda a incutir na população
que a violência não é só física, esta mulher vai ficando destruída por dentro.
A Janete que está lá a partir do quinto episódio é um mulher romântica com
esperança de salvação mas em nenhum momento a ouvimos deitar para fora palavras
contra o seu agressor, nunca a vê-mos dizer mal do que seja, ela apenas quer
que aquilo acabe, que voltem para a vida normal e que ele continue ao lado
dela. É uma construção interessante sobretudo se pensarmos na toxicidade de algumas
expressões que ela tem com ele. O nome Vida, por exemplo, por mais que seja um
título querido para dar revela logo uma sensação de dependência e submissão,
revela alguma inexperiência e ajuda-nos a situar-nos no estado de espírito
desta mulher, que de resto entregou a melhor prestação de toda a série. Camila
superou-se na ingenuidade com que abordou a sua Janete, e nas contracenas com
Eduardo Moscovis ela engoliu a atuação do seu par, por melhor que fosse. É crua
e real, mas é assim, tal e qual como a vida.
Uma verdade que
se estende também aos primeiros episódios com o arco do Boa Noite, Cinderela. E
aqui com um novo aviso sobre essa história dos encontros com desconhecidos.
Aquilo que parece ser o artifício perfeito para encontrar o amor pode não o
ser. O conto de fadas neste caso vem regado com perigo é um perigo, esse sim,
longe de ser um argumento de filmes e séries. Há casos verídicos que comprovam
essas situações e mesmo aqui Bom Dia, Verônica provou-se inteligente por
colocar as vítimas desses engodos como mulheres maduras. A maioria deste tipo
de crimes que salta para os olhos do público tem adolescentes como
protagonistas, e acaba por passar a ideia errada de que a fragilidade da idade
é uma das responsáveis pelo destino menos bom que vem daí. Aqui, sobretudo com
Tânia, a mensagem é desconstruída e abrangente e mostra bem a complexidade de
quem navega neste mundo do crime e o quão longe estão dispostos a ir para
conseguirem os seus fins. O facto dos dois principais casos abordados na
temporada não terem o típico final feliz só ajuda à que o alerta chegue mesmo
como uma sirene de aviso para quem assiste e ainda faça muito público repensar
em alguns comportamentos mais arriscados. Bom Dia, Verônica é um apelo à
segurança de todos, ao mesmo tempo que prova que a ideia pré-concebida do amor
torna todos muitos mais vulneráveis. Faltou, talvez, uma inversão de géneros
para que o choque a trama pretende entregar fosse, ainda mais, audível junto do
público. Mas nada que não se resolva numa segunda temporada.
Vamos ao outro
lado agora, o lado da polícia. Bom, este pode ter sido o núcleo menos
conseguido da série. Não que as interpretações estejam fora de tom ou que
exista um desfasamento do realismo apresentado no resto do texto, mas porque
existem muito mais clichês. Verônica e a sua ascensão ao longo dos primeiros
quatro episódios é uma releitura de outras tantas produções do género, e isso
talvez crie alguma resistência na hora de nos embrenharmos na sua história.
Tainá Müller apesar de competente também não parece encaixar-se no perfil de
Verônica, falta-lhe fôlego e estaleca para aguentar algumas cenas ou até algum
trabalho de construção de personagem para nos trazer algum pormenor que a
distinga deste universo de inspetoras. Sinceramente há muito mais
possibilidades de nos convencer numa possível segunda season, depois de
entendermos o que acontece no final desta, do que propriamente nesta primeira
versão de Verônica em que não passou de algo linear e “aceitável”. As emoções
estavam lá, mas não foi além disso, foi muito emocional, mas faltou-lhe o lado
visceral. Além de que poderiam tê-la colocado logo como inspetora, porque já
não há muita paciência entre o público para personagens que fazem um trabalho
melhor que as pessoas destacadas para essa função. Isso acaba até por
descredibilizar a polícia no seu todo e numa série que fala tanto de alertas
talvez esse não seja o melhor caminho, porque se há instituição que lhes consegue
garantir esse apoio será, certamente a justiça.
Sim, a justiça
falha muito e há milhares de casos que comprovam isso mesmo. Mas neste caso
específico poderia existir um maior cuidado em algumas cenas para não corrermos
o risco de cair em interpretações dúbias. Sabemos que existe corrupção, as
notícias estão cá para provar isso mesmo, mas porque não neste caso guardarmos
esse tema para uma futura temporada? Até poderíamos não ter casos resolvidos,
que foi o que aconteceu, mas não passava ao público uma ideia de total inércia
da polícia que apenas defende os interesse pessoais. Pode ser verdade, mas há
que ter especial atenção em que momentos se pode ou não ser tão linear assim.
Isto tudo sem esquecer a pior contracena de toda a narrativa em que opõem Anita
e Verônica. Por mais que o diálogo de Anita em que refere que eles estão ali
para encontrar culpados e não para fazer justiça seja um punch line
perfeito para este cocktail de realidade, a personagem em si pouco
acrescenta e serve apenas como figura de ódio no lado romanceado da série. É
mais uma à qual falta contexto. Porém, tal como no caso de Verônica, as fichas
do último episódio mostraram uma aposta bem alta em Anita para a segunda
temporada, resta entender se vai ser suficientemente forte para corresponder às
expectativas. No relatório final Bom Dia, Verônica é uma série urgente,
no momento certo e mesmo sem perfeição consegue fazer-nos pedir por mais. É bom
ver como o Brasil tem agarrado cada vez mais este mundo do streaming,
voltou a ganhar desta vez!
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