COMING UP | Golpe de Sol
À primeira
vista, Golpe de Sol traz ao Cinema uma curta em versão longa. Tem aquele
aspeto de história inusitada e ao mesmo tempo fechada, centrada em poucos
personagens e quase sempre no mesmo espaço. O filme vai de uma ponta à outra
para desenvolver a relação entre os quatro amigos, David, esse ser transversal
à vida deles é apenas uma menção, porque na verdade o argumento é muito sobre a
introspeção. A questão é que esse autoconhecimento cai num paradoxo bastante
estranho. Golpe de Sol é profundo nos personagens e superficial na sua
narrativa, cheio de subtexto e rico nos pormenores do diálogo, mas parece
retraído em ir mais além no íntimo dos seus protagonistas. Tem acertos e pontos
menos positivos, mas não deixa de conseguir conquistar o seu lugar dentro de um
público que ainda olha para cinema nacional como algo estereotipado. Em Golpe
de Sol, não há estereótipos, mas há um baixo orçamento que não explora as
possibilidades do elenco, das personagens e até da trama. Um passo em frente,
contudo sem deixar de refletir que há problemas na cultura, e que está na hora
de entregarmos o devido valor para termos nos ecrãs o potencial nacional no seu
todo. É português e é diferente, nós explicamos porquê nesta edição do Coming Up.
A premissa pode
parecer simples, mas à margem de um romance, Golpe de Sol tem vida. Tem
muito a acontecer, mesmo que tudo se baseie no passado amoroso dos quatro
amigos. Além de explorar várias formas de encarar o amor e até mesmo a vida
adulta, o projeto ainda bate pontos por normalizar temas que ainda sofrem
estigma sem tornar isso numa bandeira do filme. Até mesmo quando falamos em
Hollywood, a grande maioria das fitas ou séries que abordam a homossexualidade
no enredo caiem sempre nos mesmos pontos e no resultado final tudo se resume ou
a queer bait ou a uma história que tenta normalizar entregando clichês.
Aqui, há o mérito de fazer disso algo comum, algo que brinca com os clichês
como qualquer amigo brincaria na mesa de um café, ao mesmo tempo que coloca
isso de parte para se focar em quem são realmente aquelas pessoas, que tal como
qualquer outro ser humano não se definem apenas pela orientação sexual, apesar
disso ser algo importante nas suas vidas. É mais um paradoxo da trama, mas
neste caso altamente positivo, a forma como Golpe de Sol consegue
assentar no amor e em simultâneo relevar os sentimentos para se focar no “eu”
em vez do “nós”, além de bonito é muito mais relacionável para o público. Sem
podermos deixar de mencionar o breve relato que Vasco, interpretado por Ricardo
Pereira, deita por terra o preconceito de que ser gay é sinónimo de ter um
carimbo na testa. É um dos melhores momentos do filme e um diálogo que reflete
bem a visão que o argumento tem.
Falamos em
Ricardo Pereira e é impossível não destacar o seu Vasco. Pela capacidade como
sem ignorar tudo os trejeitos, ou a sensibilidade consegue apresentar-nos um
personagem rico, completo e que traduz uma versão que as pessoas tendem a
ignorar. É um trabalho difícil, uma linha ténue que Ricardo consegue agarrar na
perfeição, ser consistente e coerente na hora de criar a personagem leva a que
o ator tenha uma das melhores prestações da sua carreira no cinema e que nos
deixe a querer saber mais sobre quem é o Vasco além daquele fim de semana. Ele
não ignorou de todo o lado inato, mas sem tropeçar no exagero comum, há espaço
para provar mais do seu talento? Para quem teria dúvidas, fica a confirmação.
Simão tem outra postura, mas também ela importante, sejam heterossexuais ou
homossexuais cada pessoa é diferente, Simão talvez se aproxime mais do
estereótipo, porém não chega a ser o exagero que algumas outras
longas-metragens representam. Numa visão muito pessoal, Simão é uma mente livre
e para lá da sua sexualidade, a insatisfação com o rumo que a vida tomou é tão
poética como a vida de muitos dos mais famosos nomes da literatura. Aqui há
outro ponto positivo do argumento ao colocar esta personagem como um escritor,
a arte é a melhor forma de encarar a liberdade.
Por outro lado,
Francisco e Joana ficam aquém na hora de se introduzirem. Joana tem um arco
interessante, e lança pista sem que nunca consigamos relacionar-nos realmente
com ela. Ela transparece como alguém instável e apesar da justificação dada
mais perto do final da película, a imagem que fica é a de uma mulher fechada,
amedrontada e sem um caminho por onde seguir, é uma incógnita no início, no
meio e no fim. Porque nunca nos deixa entrar na carapaça e entender o que
realmente quer. Essa falta de foco incomoda um pouco, mas quando olhamos Golpe
de Sol num todo estamos a falar de emoções, e talvez Joana seja o contraponto
do lado expansivo dos outros personagens. O casting de Oceana Basílio
ajuda a fundamentar a teoria, a atriz trabalha a personagem com o corpo e quase
não são precisas falas para conspirarmos que esta é uma mulher insegura e
provavelmente à beira de uma depressão. Vale a pena destacar a cena em que a
personagem de fotografa porque é nesse momento que se dá o gatilho para expor
tudo o que se passa na cabeça dela. Francisco não é propriamente o melhor
apoio, no entanto neste caso o personagem de Nuno Pardal talvez seja aquele que
ficou com mais para dizer e até algo subaproveitado, porque pelos detalhes que
nos foi deixando havia ali muito para descobrir.
É nesses
detalhes que Golpe de Sorte cai noutro paradoxo que não é tão positivo.
Ao mesmo tempo que os protagonistas vão tendo momentos de profundidade, a
história à volta demora a desenvolver e cai num efeito de espera atípico. Há
muitos pormenores e detalhes sobre os personagens que são lançados ao ar, mas
que depois não são explorados. Sente-se falta de um desenvolvimento do lado
religioso de Francisco, do porquê descer relevante a ausência da mãe de Simão,
do porquê da instabilidade da relação de Joana, e outros tantos fatores que são
iscos perfeitos, mas que não avançam como esperado. É neste ponto que Golpe
de Sol se assemelha mais a uma curta-metragem que conta aquele espaço de
tempo fechado sem perder minutos com contextos e oferecendo informação que nos
faça mergulhar na história ao ponto de nos envolvermos sem sentirmos falta
demais. Mas aqui há essa falta de mais, tudo se trabalha no subtexto, e é
louvável que o filme não seja demasiado autoexplicativo, mas pode ter passado a
linha na hora de deixar coisas por explicar, há pormenores que mereciam mais
tempo de antena e que talvez até nos conectassem mais com o grupo. Porque
apesar de individualmente terem força e profundidade, não saltou para fora a
irmandade entre eles. Agarrando o exemplo de Vasco, vimos essa proximidade com
Simão, mas pouco mais.
Tem pontos altos
e baixos, mas Golpe de Sol vale a pena ser visto. É um daqueles filmes que vai
mexer com o público, que abre espaço para teorizar e não se deixa cair no
exagero arrastado que muito do público ainda atribui ao cinema nacional. Na
verdade, Golpe de Sol poderia perfeitamente ser um dos mais recentes
filmes low cost da Netflix, não fica atrás de muitos deles e consegue
ser melhor que algumas produções deste género de romances. Agora, o budget
é um problema. Talvez uma pequena injeção de orçamento trouxesse mais opções ao
argumento, mais liberdade criativa que nos podia enquadrar ainda melhor as
personagens, quem sabe até apresentar as suas vidas para lá daquela casa,
mostrar mais da relação entre eles. O mistério funciona para teorizar, mas
acaba por nos deixar a querer ver mais. Este é o misto de sensações que alguém
que vá ver Golpe de Sol vai sentir: A vontade de ver o que faltou, ao
mesmo tempo que discute as ações dos quatro amigos. Golpe de Sol era uma
daquelas produções que merecia uma minissérie que alargasse a sua história, e
teria aqui um fã porque decerto há muito mais conteúdo neste argumento do que o
que já vimos. Os encaixes da realização também valem a pena ser mencionados
porque conseguem amarrar bem o subtexto e fazer com que a imagem chegue mesmo
aos espectadores que não vão olhar para as figuras para lá da superfície.
Faltou ir mais fundo, passar para lá da sombra de David e não ter receio de
arriscar demais porque se há algo que funciona na perfeição em Golpe de Sol foi
a capacidade de agarrar de frente tudo o que para muitos olhos ainda pode ser
um tema demasiado sensível.
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