Header Ads

COMING UP | Enola Holmes


Leve, divertido e com um ritmo praticamente perfeito assim é a nova longa-metragem da Netflix que promete conquistar um bom lugar junto do público, mas sobretudo da crítica. Se na parte do mistério ainda não tem aquelas pistas fenomenais que nos vão enganando e aumentando a nossa curiosidade, apesar do argumento ter sido criado com bastante inteligência e com os links no sítio certo, já no género aventura Enola Holmes salta diretamente para os topos das listas de quem é fã deste tipo de fitas enquanto se deixa envolver num compasso perfeito com muita coisa a acontecer, ao ponto de não nos deixar sentir o peso das duas horas de filme. Consegue envergonhar muitos blockbusters e saltar vários furos acima da franquia Sherlock Holmes de Robert Downey Jr. Para as vozes críticas que reclamam sempre que um determinado ator que está muito colado a uma personagem de uma série ou filme é escolhido para protagonista, vale a pena mencionar que nem Millie Bobby Brown é Eleven nem Henry Cavill passa perto do seu Geralt de The Witcher. Falaremos disto mais à frente, de forma mais aprofundada, mas para já deixamos a promessa de que este é um filme que vai valer o teu tempo e, na sequência de The Devil All The Time, é mais um projeto que pode muito bem encaixar-se em premiações. Porquê? Vem descobrir connosco na edição desta semana do Coming Up. Enola Holmes tem muito mais para contar e muito mais para se expandir num universo que está longe do fim.

Enola bebe da mesma fonte que Emily da série Dickinson. À semelhança de Hailee Steinfeld, Millie Bobby Brown também veste a pele de uma personagem de época com trejeitos e expressões do século atual. Contudo, tal como na série do AppleTV+ o contexto é tudo e neste caso o argumento sustentou-se tão bem em provar que era necessária essa aproximação com a realidade para que nos relacionássemos com a personagem, que tudo acaba por fazer sentido mesmo que soe quase como um erro histórico. É o oposto, por mais que estejamos no passado, Enola precisa de ser este espírito livre, precisa deste momentos em quebra a quarta parede, porque tal como acontece com Deadpool ou com Francis de House of Cards essa comunicação direta garante a nossa atenção desde o primeiro ponto e acaba por nos atrair e não deixar cair a atenção mesmo em momentos mais explicativos. E atenção que usamos dois exemplos em que o recurso foi usado de forma magistral, aqui Enola joga o jogo na mesma liga deixando toda a história às claras, sem introduções, o que para um público que não esteja habituado a consumir conteúdos históricos poderia ser altamente maçador e desmotivante. É um truque conhecido do cinema, mas neste caso a forma como transpareceu como algo natural, pela forte presença de Millie Bobby Brown, tornou tudo em algo necessário e não apenas num acessório que resulta no embrulho final.

E este é, de resto, um dos pontos positivos da adaptação de Enola Holmes. Consegue chegar a vários géneros sem se comprometer a cem por cento em guiar o seu rumo por aí. A aventura é o seu plot principal, mas encaixa drama, comédia, romance, política e história dentro da premissa sem quebrar para nenhum dos lados. É este ponto de vista eclético que torna o projeto um futuro sucesso, porque chega a todos ao mesmo tempo que não trai a sua base, que não desilude nos conceitos nem na história. Tudo acontece na mesma, e os outros géneros são apontamentos que bordam o desenho quase perfeito que vemos no ecrã. Um bom exemplo disso é o tema do feminismo. Sim voltamos a falar do tema aqui, e enquanto já se torna quase num assunto banal porque está presente em quase todas as mais recentes obras de ficção, em Enola Holmes volta a provar-se que mesmo algo que parece já estar “gasto” por tanto falatório consegue parecer-nos diferente. O diálogo entre Sherlock e Edith tem o empoderamento, tem a mensagem, está tudo lá mesmo que não tenha obrigatoriamente estar definido preto no branco que esse é o tema. O diálogo rendeu uma das melhores cenas do filme que tem uma envolvência política que relembra Suffragette mesmo que adaptado a um plot que se pretende menos cinzento e dramático. O lado político da reforma e da luta está lá e, como é óbvio, a presença de Helena Bonham Carter nas duas longas-metragens ajuda ainda mais a que menção entre as duas narrativas seja ainda mais direta.

Já avançámos que nem Millie Bobby Brown nem Henry Cavill repetiram as suas fórmulas de sucesso dentro da Netflix, mas onde está a diferença? É óbvio que no caso de Millie Bobby Brown, pela sua carreira mais recente e pelas parecenças no lado obstinado e corajoso das duas personagens, conseguimos ainda rever alguns pormenores de Eleven, mas mesmo neste caso há uma linha diferenciadora. Enquanto Eleven ainda vive sufocada com algum medo e tem de lidar com todo o lado obscuro dos superpoderes que nem ela ainda conhece, Enola é muito mais pragmática, ativa e sem receio dos riscos. A rebeldia está intrínseca na sua educação de uma forma que relembra muito Captain Fantastic, mais uma vez com as devidas diferenças de contextos, mas com a mesma base que tenta provar que aprender através da chamada lei da vida não é menos válido do que a doutrina escolar. Claro que estamos a falar de algo puramente ficcional em que a personagem absorveu bastantes conhecimentos dos milhares de livros que leu, mas esse lado empírico e visceral de Enola tornam-na em algo fácil de afeiçoar, e para esta afeição ser possível Millie Bobby Brown foi um fator decisivo. Ela poderia facilmente cair no exagero, sobretudo nas quebras de quarta parede, porém não acontece, ela guia-nos pela comédia num percurso bonito que nos faz torcer por ela, mas sobretudo acreditar na sua capacidade de autoconhecimento. A forma como agarra as cenas de maior ação, assumindo sem problemas as rédeas do texto ao lado de veteranos com carreiras confirmadas na sétima arte só prova que ela é muito mais que Stranger Things e que vai conquistar facilmente o seu espaço em Hollywood daqui em diante.

Para abordarmos Henry Cavill temos de parar para pensar. Sherlock Holmes é um clássico, mas é um clássico com vários espectros e camadas a ter em consideração. Nas várias adaptações que já teve é fácil entender que não há uma única forma de olhar para o personagem, Benedict Cumberbatch, Ian McKellen e Robert Downey Jr já tinham, recentemente, provado isso à sua maneira, sem desprimor para nenhuma das interpretações, e agora Henry Cavill mostra-nos mais uma visão única sobre o detetive mais famoso da ficção. Não lhe falta apenas Watson, também cai por terra a sua falta de humanidade e empatia com quem o rodeia, este é o Sherlock que ri, que se importa é que tem uma noção interessante sobre o que é pertencer a uma família. Na verdade, desconstruindo a interpretação do ator das linhas gerais que definem Sherlock restou-lhe a aparência da aristocracia tipicamente inglesa e a perspicácia de desvendar qualquer mistério. Mas não há nada de errado nesta leitura, pelo contrário é uma visão que tem uma base de exploração gigantesca e que consegue marcar a diferença o suficiente para se tornar único dentro de um meio audiovisual que já explorou o personagem de mil e uma formas diferentes. Faltou-lhe mais incidência na trama principal, mesmo tendo conquistado todos os segundos de ecrã que recebeu, mas acreditamos que isso não seja um acaso e que numa possível sequência a realidade se venha a inverter agora que Enola já está introduzida e se provou capaz de destruir mistérios com a mesma velocidade do irmão. O futuro parece bastante promissor para Henry Cavill, que soma mais uma boa reinterpretação de um clássico, fugindo dos estereótipos.

E Oscar? É verdade, há sérias probabilidades de este ser mais um dos frontrunners da Netflix na corrida às estatuetas. É uma produção que conquista, e mesmo que não tenha a profundidade que a academia de votantes tanto adora, as temáticas estão lá e com o tom light que agrada a públicos mais mainstream. Encaixando o exemplo de The Devil All The Time, tanto Tom Holland como Millie Bobby Brown são jovens talentos dentro desta indústria mas são nomes já consolidados dentro das camadas mais jovens que atraíram público para longas-metragens que não iriam ver de outra forma e indiretamente acabam por pensar nas narrativas dos projetos, acabando por aprender um pouco mais com o temas que os rodeiam e aqui temos de parabenizar a Netflix por conseguir cumprir o papel de educar o público com uma visão de futuro, olhando para a geração que se segue. Claro que os dois filmes estão em extremos opostos, mas as problemáticas estão no mesmo nível de importância e isso importa, bastante. Talvez não venham a ter o reconhecimento nas grandes cerimónias, mas já valeu o esforço de produzir algo com esta qualidade e dimensão, porque o público ganhou. A academia não gosta de franquias e Enola Holmes tem tudo para se tornar numa e de grande sucesso. O foco em Enola foi necessário nesta primeira película e a sensação de que ainda há mais para contar faz perdoar a falta de espaço para outros grandes nomes do elenco. O casting foi perfeito e sinceramente não parece ter sido um acaso. Fiona Shaw, Sam Claflin e Henry Cavill vão de certeza voltar para a sequência que já terá um peso muito maior porque depois de somar tantos acertos as probabilidades de erro são enormes. Que confirmem já o próximo porque Millie Bobby Brown já nos conquistou!