COMING UP | The Secret Garden
The Secret
Garden é a adaptação que aquece o coração dos fãs, porém que passa longe da
perfeição. Da animação vieram os pormenores dos tons e o sentimento de
melancolia que atravessa toda a trama, mas tudo isso atropela a história que se
perde por não se conseguir encaixar numa longa-metragem. No meio de tentativas
é uma história de fantasia que entretém, mas que deixa de ser memorável pela
forma como explora todo o subtexto que as mudanças de status e cultura da
protagonista representam. No limbo entre algo mascarado com leveza para chegar
ao público infantil ou juvenil e um background com profundidade que
merece ser explorado, The Secret Garden perde-se dentro de si mesma e
deixa apenas a satisfação da nostalgia de quem já se apaixonou pelos
personagens nas suas versões anteriores. É mau? Não, há um cuidado técnico que
merece ser realçado e um apelo de longa-metragem indie que consegue esconder
alguns defeitos. O argumento não encanta para além do médio e deixa antever
claras dificuldades de budget na hora de transpor para o ecrã o universo em que
mergulhámos quando éramos crianças. Vale por alguns pontos de releitura do
original e por trazer para os holofotes os contrastes culturais de uma forma
que foge do óbvio. O mérito é deste filme? Ou da obra clássica? É isso que
vamos discutir esta semana! É hora de mais uma edição do Coming Up!
Para quem viu a
animação, vai reconhecer as semelhanças no tom da imagem, o cuidado para fazer
com que as diferentes estações sejam notadas aos olhos do público é feito com
uma maestria que chega aos olhos de todos, os velhos conhecedores da história e
os novos públicos que foram chamados agora ao cinema. Por outro lado, as
primeiras cenas do projeto quase exigem que quem assiste já tenha visto o
anterior para se situar dentro do storytelling, deixa no ar aquela
sensação de que está é uma produção feita a pensar no nicho de público que vai
ser levado a ir ver pelas lembranças do passado. Mas mesmo nesse jogo de
memória acaba por cair com alguma frustração pelos severos cortes que a
narrativa adaptada apresenta. Para quem já não vê a animação desde que era
criança, as linhas gerais da história podem acabar por cair no esquecimento e
isso torna complicado entender o que levou Mary a viver numa mansão gigantesca,
mas a ter de se contentar com pequenas migalhas. O texto introdutório ajuda a
descodificar a verdade para lá dessas cenas, mas dentro de um projeto que se
pretende virado para um público infante-juvenil essa ausência de uma explicação
pode acabar por ditar uma desistência logo nos primeiros minutos. Sobretudo
porque, tal como a animação, a imagem é carregada com a melancolia do inverno
que assenta com esta fase da vida da figura central da trama. Por mais que o
pormenor seja interessante do ponto vista técnico e traga um complemento
interessante à história não ajuda a manter a atenção de quem mergulha nesta
aventura pela primeira vez.
Mantendo a linha
que já nos apresentou antes, The Secret Garden fala de educação, de uma
forma madura e sem as magias comuns de uma história infantil. Mary é uma
criança que facilmente conquista o ódio do público, mas o seu contexto é uma
completa aprendizagem. Tem o lado snob, a altivez de quem sempre teve tudo e de
quem não aprendeu nada com as dificuldades que passou, mas tem também a
descontração de quem acha que o dinheiro compra as boas maneiras. O requinte da
mansão salta à vista, más deparamo-nos com uma rapariga que não sabe vestir-se,
que não sabe cuidar de si mesma, no fundo sem independência. É interessante a
forma como o filme foca nestes comportamentos da jovem para provar ao seu
público alvo o quão importante é a humildade, a independência e a entreajuda.
Por mais que a mensagem do original seja ainda mais vincada e traga uma maior
moralidade, Em 2020, o filme soube tratar o tema com a delicadeza necessária e
com Dixie Egerickx a entregar uma interpretação quase no ponto certo. Porquê
quase? A rebeldia de Mary talvez pedisse um pouco mais de presença que nos faz
pensar que Dafne Keen era a atriz perfeita para o personagem que até tem alguns
traços semelhantes com a sua Lyra de His Dark Materials. Fora isso, a
personagem consegue criar a mesma montanha russa que tivemos na animação com a
sua redenção a ser trabalhada no compasso certo. Aliás, a forma como a
protagonista foi construída nesta adaptação talvez tenha sido o melhor acerto
do filme, nota-se um cuidado em manter a sua história que não há com o restante
elenco e vale destacar as boas contracenas que rende com Isis Davis, que apesar
de praticamente estreante nos entrega veracidade na sua Martha.
Mas já que
falamos em núcleos secundários, The Secret Garden errou totalmente com
Julie Walters. Com um nome tão grande de Hollywood e uma personagem com o
impacto que Mrs. Medlock tem na película anterior, chega a ser ofensivo ver a
forma como transpuseram a governanta para esta releitura. Na longa-metragem ela
não é mais do que a figura que serve de vilã há história com um total vazio de
conteúdo e sem uma personalidade definida que contrasta muito com a figura
austera e até maliciosa que chega mesmo a maltratar Mary na animação. Aqui
ouvimos que ela está sempre cheia de trabalho e assistimos a uma cena em que
Mary goza com a sua típica altivez, gerando uma comédia que é leve e serve a proposta,
mas que não casa em nada com o original. É um claro caso em que a atriz não foi
bem aproveita e gera desconforto a quem ainda conserva na memória a mulher que
atormentou até de uma forma menos infantil da protagonista. Não há sequer
espaço de ecrã para a cena em que ela é posta na rua depois do seu patrão
viajar e deixar a casa entregue à senhora. Na hora de cortar cenas talvez
exista um exagero no que toca a Mrs. Medlock que passou de uma das principais a
uma coadjuvante sem grande importância e que tem no auge da sua participação
apenas os seus primeiros cinco minutos de ecrã. O mesmo acontece com Colin
Firth que parece ter servido para entregar um nome forte ao casting num papel
que pela forma como foi tratado pelo argumento poderia ser de qualquer um. É um
caso que lembra muito Colin Farrell e a sua curta passagem em Artemis Fowl.
As duas personagens carregadas de potencial, mas que não resultam pelos
atropelos do texto.
Há muito das
feridas de guerra a acontecer para lá da cortina da história principal. As
consequências estão lá, contudo aos olhos de uma criança que pela sua inocência
não consegue entender na totalidade a realidade que a envolve. No anúncio do
novo projeto, surgiu a possibilidade de vermos uma nova exploração deste
background que acrescenta interesse à história e a tornam em algo verdadeiramente
diferente do género infantil, no entanto ficou reduzido a alguns flashbacks e
cenas iniciais. Não chega a ser uma crítica, porque esta temática no pouco
tempo de ecrã que tem consegue ser bem trabalhada e dar aquele tom de filme
indie pela forma como trabalha a dimensão dos acontecimentos no ponto de vista
de uma criança que ainda vive num conto de fadas. Por outro lado, há coragem
para deixar no ar algo dúbio, mas relevante. As cenas com Colin deixam no ar a
dúvida sobre a sexualidade do personagem, apresentando o crescimento como algo
natural, talvez tenha faltado força ou tempo para levar este arco mais além,
mas ficou a intenção claramente imposta sem grandes alaridos ou algo muito
definido porque na verdade estamos a falar de crianças. Deixa-se ao
livre-arbítrio do público definir os planos futuros do personagem, mas não
deixa de ser uma menção interessante, sobretudo numa narrativa que nos fala
tanto sobre a importância da aceitação e da educação. A educação para aceitar o
outro está lá neste pequeno apontamento do subtexto de The Secret Garden.
Mesmo assim, fica aquela vontade de que existisse mais tempo para entendermos
um pouco mais sobre esta questão, porque foi, sem dúvida uma pedrada no charco
na hora de reler a animação para um live action.
Neste meio
caminho entre o seu bom e mau, The Secret Garden sai como uma produção
indefinida que junta boas ideias numa boa execução técnica, porém num argumento
que está longe de atingir a complexidade das entre linhas do antecessor. É
apenas uma fantasia, que merecia sim uma adaptação ao cinema com um live action
mas com menos cortes, e com outro tipo de duração, para não deixar quem vê
pela primeira vez a ideia de que é uma manta de retalhos que vai a todo o lado
sem se aprofundar muito nos temas que escolhe abordar. É uma tentativa de fazer
diferente, todavia que perdeu o braço de ferro com o medo de ser demasiado
diferente, demasiado ousado. O budget não ajuda, e nota-se que foi uma produção
que perdeu por não ter um grande estúdio por detrás do projeto. Não tem erros
tão graves como Artemis Fowl, que ainda por cima contava com o selo da
Disney, mas também não convence nenhum pai que tenha dúvidas na hora de
apresentar a história de The Secret Garden aos seus filhos, a animação
continua a merecer destaque. É nostálgico e tem momentos que apelam à nostalgia,
porém fica-se por isso mesmo. Podia ser melhor e há margem para uma sequência
que explore só às personagens tão ricas deste universo para lá do romance de
cordel, apesar de ser altamente improvável que isso aconteça. Talvez no futuro
o mundo do streaming tenha a coragem de repensar a trama com o peso e
medida certo, porque para já ficamos apenas com algo feito de fã para fã.
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