COMING UP | The Old Guard
The Old
Guard é um exemplo atípico de como uma trama recheada de clichês ainda tem
espaço para se tornar em algo bastante bom. Inicialmente o guião caminha na
linha ténue de ultrapassar a barreira do óbvio, mas graças a um elenco que não
deixa esmorecer as vontades e dúvidas dos seus personagens é impossível não
considerarmos que a nova longa-metragem de Netflix fica bem a cima da linha de
água e quase consegue bater o seu último sucesso deste género, Extraction,
por nos entregar uma trama com mais sumo e margem para teorizar. Por mais que
não seja um filme que a longo prazo estará entre os projetos de culto do cinema
da ação, é sem margem para dúvidas um original que vem reforçar com qualidade
os projetos do serviço de streaming e mais uma prova de que o caminho
certo é por aqui. Pelo meio, é muito mais do que um espetáculo de coreografias
ou pirotecnia e abre espaço para momentos de drama invulgares e questões muito
mais profundas do que as que estamos habituados a ver projeto que se encaixa
dentro da categoria de ação. Temos coesão, coerência e Charlize Theron num
filme que brinca com as nossas expectativas por ter uma sinopse tão básica, mas
resultar em algo empolgante e apetecível. Vamos falar sobre assunto na edição
desta semana do Coming Up! Fica por aí.
Charlize Theron
torna-se cada vez mais numa figura icónica dentro da nova leva de filmes de
ação. Depois de Atomic Blonde e o trabalho exímio no revival de Mad
Max, a cultura pop volta a ganhar com um longa-metragem que tem a
atriz como protagonista. O trabalho de entendimento da personagem em cada cena,
além de nos render cenas de luta que só alguém com o traquejo de Charlize nos
podia entregar ainda nos vende a ideia de verdade para la da fantasia com uma
personagem com uma componente sobrenatural a tornar-se em algo altamente
humano. E neste último ponto tínhamos tudo para ter uma to falhado, já estamos
a cair no marasmo de tramas com personagens que têm alguma espécie de dom, e
apesar do argumento não fazer um esforço visível para distanciar Andy de outras
representações, Charlize embrulha esta protagonista num papel diferente
revelando-nos a fraqueza e incerteza para lá da capa de mulher forte e com um
certo tom de insegurança até na forma como coloca a voz. Não há espaço para
falhas e mesmo dentro de contracenas que sejam menos bem conseguidas, a
intérprete consegue dar um verdadeiro show de representação e provar que
continua a ser uma aposta segura. Se bem que o facto de ter feito outros
trabalhos recentes e marcantes com este esquema de ação poderá tornar-se
repetitivo para o público, por melhor que seja a intenção e a atuação de
Charlize em distanciar Andy de Lorraine, por exemplo, há sempre um denominador
que comum que pode deixar-nos com a sensação de que é um sucesso fruto de uma
réplica bem conseguida ao invés de uma luta para entender as motivações. É
dúbio, mas no caso de The Old Guard seja qual for a verdade por detrás
dos factos, certo é que a figura principal da história é o motor perfeito para
o filme colher os bons resultados.
Mas voltemos à
narrativa que nos primeiros dez minutos se apresenta como algo introdutório e
até um pouco arrastado demais. Mas como um filme, tal como um livro, não deve
julgar pelos momentos iniciais chega Nile para inverter o ritmo e dar contexto
ao universo criado pelo storytelling de The Old Guard. Ditadas as
regras do jogo torna-se tudo muito mais prático para quem vê e parece que nos
surge finalmente um objetivo para lá do lado sobrenatural que já tínhamos visto
nas primeiras cenas. O mérito deste salto dentro da trama deve-se ao
desenvolvimento, sim, mas uma grande fatia dos louros terá de ser entregue a
KiKi Layne que mesmo ao lado de um portento como Charlize Theron não se deixou
acanhar e entregou uma atuação bem construída, e contracenas excelentes na comédia
e na ação. A “conversa” entre as duas a abordo do avião traça o caminho que
podemos ver dali em diante, se bem que deixa logo aí, em que cerca de meia hora
de fita, antever um spoiler sobre o desfecho de toda a história. Não é algo que
atrapalhe a experiência, mas foi bastante óbvio pela forma típica com que foi
construído todo o momento. A partir dessa contracena, que rende uma das
melhores piadas da longa-metragem, é bom ver como o trabalho para nos envolver
nas causas e efeitos do suposto “dom”, há um embasamento muito bem construído e
uma história por detrás de tudo ao invés de cair na habitual lógica de atirar
os factos fantasiosos para o meio de trama com uma justificação inserida em
cima do joelho, aqui não. Há, de facto, uma ideia de continuidade que é
apresentada logo nestes primeiros minutos porque seria impensável apresentarem
algo tão rico em conteúdo e contexto para terminar dali a uma hora, ou seja
mesmo que não estivesse confirmado, uma continuação ou spin-off torna-se
imperativo, até por mérito dos criadores de The Old Guard, que pensaram
para além dos clichês, pelo menos nesse ponto.
Porque sim, o
filme tem um problema de repetições muito grande. Começando pela passagem de
testemunho e terminando no vilão e suas motivações. Chega a ser incomodo pensar
que quem criou toda a base sobrenatural da trama esteve envolvido na elaboração
deste vilão oco e vazio. O personagem de Harry Melling é, de longe, um dos
piores pontos do filme, por conta do seu desenvolvimento e pela interpretação,
porque Melling claramente é engolido por um elenco de gigantes, o que é uma
pena de assistir por ser uma figura com quem muito do público de The Old
Guard cresceu e que teria aqui uma oportunidade para revitalizar a sua
carreira mas acaba por entregar uma versão lunática de um vilão tirado a papel
químico de qualquer saga das bandas desenhadas da Marvel. Copley, por exemplo,
casa muito melhor com as linhas gerais criadas até então e talvez tivesse sido
uma melhor solução apresentar o personagem como o único contraponto da ação e
excluir por completo Merrick. Isso não significava o fim da hipótese de
apresentarem a redenção do anti herói e poupava-nos ao constrangimento de ver
cenas em que Melling é explodido em contracenas com nomes gigantes de Hollywood
enquanto nos dá simplesmente olhares alucinados e o comportamento de um
personagem que consumiu bastantes ácidos, há momentos de Melling em que ele
salta à vista como uma versão mal atuada de Jared Leto em Requiem For a
Dream, quando o arco do personagem nem tampouco tem algo a ver com o tema.
Os clichês
continuam com o casal Joe e Nicky, porém neste caso o que poderia ser mais uma
jogada barata de queer baiting faz todo o sentido para trazer à tona
aquela lógica mais que utilizada em dramas com seres imortais sobre duas
pessoas que juntas vivem uma paixão arrebatadora que perdura nos tempos. Aqui o
argumento faz uma desconstrução que é simples, mas que não é explorada de forma
tão fácil dentro desta categoria de filmes. E funciona! Tão bem quanto o
discurso sobre a relação dos dois dito por Joe durante o seu rapto, é o momento
em que duas personagens até então figurantes conseguem captar a nossa atenção,
criando o apresso do público. Neste último quesito temos uma trama que sabe
como chegar até nós na hora de construir uma personagem. E chega a ser
filosófico pensar na forma como a relação daqueles dois sobrevive com tanto
vigor. Mas deixemos as questões mais profundas para o existencialismo que está
presente em toda a história de The Old Guard e que vem desfazer a ideia
de que um final feliz não tem necessariamente de ter um “para sempre”
associado. Até porque o tempo pode ser curto, mas a mal ou bem será sempre o
indicado e qualquer extrapolação coloca-nos fora de pé. Da mesma maneira que
colocou Andy numa espiral de culpabilização que vai ser eterna, uma
autoflagelação diária que não vai terminar nunca independentemente dos anos que
passarem. Aí entendesse o outro lado da moeda, com Booker a tentar encontrar um
fim para o seu tormento, mais ou menos como vimos com Cain em Lúcifer, e
a entregar-nos a desvantagens de não darmos a morte como certa. É um
contrabalanço que poderia ter sido ainda mais explorado se não tivessem
insistido em colocar um vilão com cara de mau mas sim investido a duração do
argumento em defender o lado do grupo que luta pela sobrevivência e pela
superação das suas culpas em detrimento de quem procura ajudar o mundo a ser um
sítio melhor e tenta alienar-se da realidade, porque neste verdadeiro duelo é
muito mais difícil tomarmos um partido enquanto público. Era um degrau acima
sobre a atenção necessária para assistirmos à película.
The Old Guard
é uma aposta ganha e vale, sem dúvida o nosso tempo. Aborda de forma diferente storylines
que já vimos dezenas de vezes e dá-lhe um refresh de século XXI sem se
deixar cair em estereótipos que o tornem ou teenager demais ou demasiado focado
na ação e distraído no conteúdo. É uma boa introdução para uma nova saga, com
todos os dados lançados e os alicerces certos para se sustentar daqui para a
gente. Charlize, como protagonista dá um upgrade no filme sim, é impossível
negar é uma futura sequência sem a atriz como protagonista pode não trazer um
resultado tão satisfatório quanto este. No entanto, ter uma grande cara como
esta num elenco é sinónimo de colocar todos os holofotes nela, e no caso de The
Old Guard talvez tenha feito falta ver um enquadramento maior dos outros
integrantes do grupo, eles tiveram momentos de destaque e garantiram a afeição
dos espectadores, mas faltou vermos mais momentos em que realmente influenciassem
o curso da narrativa. É uma brecha a melhorar numa sequência em que se espera
uma explicação mais aprofundada sobre como Andy está ligada com este dom e qual
é a verdadeira ligação entre a figura histórica e os outros “abençoados”.
Apesar da forma como brilhantemente nos entregaram justificações lógicas para
os eventos do filme, há espaço para conhecermos a origem destes poderes mais a
fundo, a introdução de Copley na equipa já promete ser um prelúdio desta
explicação estruturada mas teremos de esperar para ver até onde a sequência
consegue manter o ritmo desta primeira longa-metragem e se consegue voltar à
casa ação, drama e coesão de uma forma tão transversal. É um desafio difícil e
a verdade é que neste tipo de projetos com budgets tão elevados, os típicos
blockbusters, a Netflix ainda é uma aprendiz, será que a aluna supera o
professor? Será que na sequência teremos Nile com cenas ainda mais impactantes
que as de Charlize? Muitas dúvidas e a vontade de ver o próximo já!
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