Contos Bastardos #9 • Medo
Contos Bastardos #9
MEDO
Do escuro, de aranhas.
De cobras, répteis, ratos, palhaços, alturas.
De voar, de trovoada, de multidões.
De fantasmas, de agulhas, de falar em público.
Desde novo que lhe falhava a faculdade de temer, de recear.
Não se fazia de valente: era, simplesmente, alheio ao processo.
Algures, ainda enquanto embrião talvez, saltou essa aula. Nasceu de olhos bem abertos, sem choros nem gritos: não havia nada neste mundo que lhe causasse Medo.
Era a criança que, com 2 anos, dormia de luz apagada.
O adolescente que subia às montanhas-russas mais altas, que assistia à trovoada em êxtase, que se movia por entre o trânsito russo caótico na sua bicicleta sem mudanças, que percorria os atalhos mais escuros e impopulares até casa.
O perigo, todavia, não lhe era estranho. Ainda carregava uma lista, feita pela mãe, com os principais receios a ter em conta: uma folha dobrada, sempre no bolso de trás, com pontos como não se debruçar em varandas, não deixar objetos valiosos à vista e não aceitar boleia de desconhecidos.
Claro que os sabia de cor, cada um do total de 173. Mas guardava a cábula com carinho.
Em adulto aprendeu, como um sociopata da valentia, a forjar os sintomas.
Sabia que era normal temer pela vida de um familiar doente e, embora esse receio lhe fosse totalmente desconhecido, manifestava-o junto aos outros com uma convicção que tornava impossível discernir a cópia do original.
Naquele momento, entrou no quarto onde estava Praskovya - mais destemido do que nunca.
— Ivan, olha que linda é a nossa filha.
Quando viu a cara minúscula da menina, sentiu um arrepio gelado. Tremeu.
Dormente, confuso, pensou que ia morrer.
Era isto o Medo?
Pegou na criança.
— Bem-vinda, Svetlana. Fica sabendo que hoje não foste só tu a nascer: vais sempre partilhar o aniversário com um enorme medricas.
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente
Comente esta notícia