COMING UP | Dark
O fim é o início e o início é o fim. Esta é a premissa que deverás ter em conta desde o primeiro momento que assistires a Dark. A série alemã criada por Baran bo Odar e Jantje Friese tem tanto de empolgante como de genial. Ao longo dos 24 episódios que compõem as três temporadas, somos convidados a fazer uma viagem que desafia as leis da física e que vai para além dos conceitos de espaço e de tempo tal como os conhecemos. Dark é, na verdade, uma complexa teia de acontecimentos e personagens, que nos é apresentada de uma forma muito pouco convencional, mas em que tudo faz sentido no meio de um caos.
Um caos que mistura passado, presente e futuro, com o tempo a assumir-se como uma mera ilusão. Cada personagem de Dark tem várias versões ao longo da série e, quando estas começam a viajar para épocas – ou até mundos – diferentes, tudo fica bem mais complexo. Mas na sua aceção, a palavra “caos” vai muito além disto, até mesmo quando inserida no contexto da narrativa. Caos, na mitologia grega, foi o primeiro deus primordial a surgir no universo, sendo por isso a mais antiga forma de consciência divina. O termo deriva do verbo grego chaíno, que significa "separar", "ser amplo", e o poeta romano Ovídio foi o primeiro a atribuir a noção de desordem e confusão à divindade Caos. Nix (Noite) e Érebo (Escuridão) são os seus filhos e resultam de várias cisões. Uma ideia mitológica que ganha uma dimensão ainda mais interessante quando é feito o paralelismo com Dark.
Os criadores da série já haviam explicado que o nome da mesma tinha sido escolhido com o intuito de mostrar o lado sombrio da Lua. E esta ideia transparece ao longo das três temporadas, muito apoiada pela fotografia de Nikolaus Summerer, impecavelmente pensada e que nos ajuda a entrar no ambiente mais escuro que a série sugere. Com recurso a vários movimentos de câmara, planos sequência brilhantemente filmados e uma ideia de film noir em vários momentos – também reforçada pela constante presença de chuva e da luz baixa em muitos ambientes da ação –, Dark apresenta-se como uma obra muito coesa visualmente. Também as simetrias que existem ao longo dos episódios, dentro do mesmo plano ou pelo paralelismo que os diferentes mundos nos trazem, são de notar.
Esta ideia de escuridão vai, contudo, para além do literal. É que, metaforicamente falando, Dark é também um excelente exercício de análise do lado mais negro de cada um de nós. Se a questão das viagens no tempo é o ponto forte desta produção – que nos leva a uma série de twists e ligações narrativas completamente surreais – também a densidade dramática das personagens e das suas ações são surpreendentes. Cada personagem de Dark mostra-se complexa, bem desenvolvida, com uma linha de vida bem delineada (ou não fossem constantes os saltos temporais), fazendo com que todas as suas escolhas sejam justificadas. As questões morais são, portanto, outro dos grandes pontos neste enredo, que alia a fantasia e a ficção científica ao que de mais real e cru existe na condição humana. O trabalho do elenco é também importantíssimo para que esta carga dramática esteja presente e a verdade com que cada uma das interpretações surge no ecrã, leva-nos a pôr em causa muitas coisas que até agora demos por garantidas – até na nossa própria realidade.
Não deixa de ser, ainda, notável a escolha irrepreensível do elenco da série. Em Dark, a mesma personagem pode ser interpretada por vários atores e chega a ser impressionante a semelhança física entre cada um deles. Em alguns casos, o casting é tão exímio, ao ponto de termos dois atores a interpretar a mesma personagem e que, na vida real, têm uma relação de parentesco. É o caso da personagem Peter, uma vez que Stephan Kampwirth (o ator que o interpreta em 2019) e Pablo Striebeck (o responsável pelo Peter de 1987) são pai e filho na vida real. Também as semelhanças entre, por exemplo, Oliver Masucci e Winfried Glatzeder, os dois atores que dão vida às versões adulta e idosa de Ulrich, são inacreditáveis. São os pormenores, como este, que fazem a diferença ao longo das três temporada de Dark.
E a prova de que tudo é importante no desenrolar da ação, está também no som. Nesta produção, até os elementos sonoros são minuciosamente preparados e pensados em cada uma das cenas. Os leitmotif, por exemplo, são constantes ao longo dos episódios, o que nos ajuda a criar uma relação próxima com cada personagem, sabendo até algumas das consequências das ações que estão a tomar. Estes temas musicais que surgem várias vezes ao longo da narrativa ajudam-nos ainda a adensar a carga dramática e misteriosa e complementam o trabalho de construção de ambientes que, em Dark, é também impressionante. O som da série não é meramente ilustrativo e isto aplica-se ainda às músicas que surgem na parte final do episódio, altura em que nos é apresentada, regra geral, uma sequência de planos cuja montagem nos sugere ações que são sempre importantes, provando que todos os segundos são fundamentais para entendermos a ação.
Uma ação que, apesar disso, nada tem de previsível. À medida que avançamos na história, ficaremos cada vez mais confusos. É preciso assistir com atenção e não deixar escapar nenhum detalhe. Porque em Dark tudo – mesmo tudo – pode acontecer. E mesmo aquilo que parece não fazer sentido acaba por estar assente em hipóteses científicas reais – os criadores referiram que as teorias defendidas por Einstein foram a base de muitos desenvolvimentos e explicações na história. O paradoxo de Bootstrap, por exemplo, também poderá explicar muitos dos factos aparentemente impossíveis em Dark. Na verdade, acaba por ser a base que torna possível acreditarmos na história da série e, mesmo sem conhecermos o seu enunciado, estaremos a adotá-lo enquanto visionamos a produção alemã. Esta teoria diz que um objeto, quando viaja no tempo para o passado, perde o seu ponto de origem e acaba por ficar preso numa repetição infinita. Isto é, se as viagens no tempo para o passado fossem possíveis, um objeto poderia existir sem nunca ter sido criado. Isto explica um dos grandes paradoxos da história, o caso de Charlotte e Elisabeth, uma vez que as duas personagens são a causa e efeito uma da outra, estando as duas num ciclo sem um ponto de origem concreto.
Dark acaba por se tornar numa das melhores séries de sempre produzidas pela Netflix, pela sua elevada qualidade técnica, pelas suas surpreendentes escolhas criativas, mas, sobretudo, pela complexidade e genialidade da sua história, que de linear não tem nada. A viagem é atribulada, mas a certo ponto conseguimos orientar-nos no meio deste caos. O final – sem spoilers – tem tanto de simples, como de poético, provando que tudo em Dark está no sítio certo, até este que é um desfecho bem construído, sem grandes pontas soltas e que te fará pensar durante algum tempo sobre a tua própria realidade. O loop continuará a fazer parte da história, mesmo depois de desvendado o grande mistério da trama - algo que não surpreende, se tivermos em conta uma premissa tão importante para esta história: o fim é o início e o início é o fim.
Texto: André Pereira
Grafismo: Ricardo Neto
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