Contos Bastardos #2 • Bem-vinda ao primeiro período
Contos Bastardos #2
BEM-VINDA AO PRIMEIRO PERÍODO
Na noite em que os meus pais me contaram, chorei tanto que as lágrimas viraram sangue e o meu corpo se transformou num imenso saco lacrimal. Não dormi, cheia de medo de morrer.
Arranquei a cabeça das bonecas, uma a uma. Estas não sangravam. Estúpidas, ocas. A mamã ia adorar tê-las como filhas.
“Não sejas dramática! Por tudo esta miúda chora!”
Com que então íamos mudar-nos para a cidade... “Daqui a duas semanas, Rosa”
E a professora Carla, han? E a Guidinha? E a seara de milho novo? E as melancias?
(E o António? E a mãos e os pés e o cabelo do António, e o seu cheiro e sorriso e os intervalos da manhã, e os jogos de matrecos e os Ucais partilhados no bar, e os bilhetinhos trocados nas aulas?)
Não. Não admito.
Queriam matar-me e quase conseguiram.
Os meus órgãos internos sangravam, solidários comigo.
Nessa noite fatídica, o meu coração não encontrou remédio senão separar-se em dois - um para ficar, um para ir comigo.
Até o estômago, a bexiga e o fígado se rasgaram a meio, puxão de dor forte e profunda no ventre. Razia de serra elétrica - de norte a pés.
Poça vermelha-rubi de chacina.
Destroços de um interior outrora feliz.
Ainda acha que é dramatismo, mamã? Vejam o que causaram!
O Sol nasceu e iluminou o quarto. A minha infância jazia naquele chão e naqueles lençóis, sangue aguado de lágrimas e de saliva onde mordi para não gritar.
Amarrotei as provas e levei-as, numa caminhada decidida. Abri o lençol sem pudor, frente aos seus olhos, como uma bandeira hasteada em protesto.
A reação inesperada: houve lágrimas, sim - mas não de culpa, não de preocupação.
- Filha. Agora és uma mulher.
Mulher? Queria lá eu ser uma mulher sem o António a fazer de mim uma.
Arranquei a cabeça das bonecas, uma a uma. Estas não sangravam. Estúpidas, ocas. A mamã ia adorar tê-las como filhas.
“Não sejas dramática! Por tudo esta miúda chora!”
Com que então íamos mudar-nos para a cidade... “Daqui a duas semanas, Rosa”
E a professora Carla, han? E a Guidinha? E a seara de milho novo? E as melancias?
(E o António? E a mãos e os pés e o cabelo do António, e o seu cheiro e sorriso e os intervalos da manhã, e os jogos de matrecos e os Ucais partilhados no bar, e os bilhetinhos trocados nas aulas?)
Não. Não admito.
Queriam matar-me e quase conseguiram.
Os meus órgãos internos sangravam, solidários comigo.
Nessa noite fatídica, o meu coração não encontrou remédio senão separar-se em dois - um para ficar, um para ir comigo.
Até o estômago, a bexiga e o fígado se rasgaram a meio, puxão de dor forte e profunda no ventre. Razia de serra elétrica - de norte a pés.
Poça vermelha-rubi de chacina.
Destroços de um interior outrora feliz.
Ainda acha que é dramatismo, mamã? Vejam o que causaram!
O Sol nasceu e iluminou o quarto. A minha infância jazia naquele chão e naqueles lençóis, sangue aguado de lágrimas e de saliva onde mordi para não gritar.
Amarrotei as provas e levei-as, numa caminhada decidida. Abri o lençol sem pudor, frente aos seus olhos, como uma bandeira hasteada em protesto.
A reação inesperada: houve lágrimas, sim - mas não de culpa, não de preocupação.
- Filha. Agora és uma mulher.
Mulher? Queria lá eu ser uma mulher sem o António a fazer de mim uma.
Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente
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