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Conto • "Era a mulher mais feia do mundo"

Ilustração: Filipa Contente

Era a mulher mais feia do mundo é o nome do conto escrito por Sónia Costa. Uma história particular, forte, intensa, que marca a estreia da jovem escritora no Fantastic, num novo género que passará a ter uma presença assídua no nosso site - o texto literário.


Era a mulher mais feia do mundo
um conto de Sónia Costa

Havia, na sua fealdade, algo intransponível para palavras.  Quando abria os olhos para um novo dia, a mente era de imediato invadida por pensamentos imundos.

Punha um pé fora da cama e começavam as vozes. Punha o outro e lá vinham as alucinações. Se pusesse os dois de repente, num dia em que se levantasse com especial rapidez, o ódio era de tal forma avassalador que chegava a perder os sentidos em convulsões de raiva.

Havia algo na conjugação de todos os cinco sentidos (e mais um ou dois, em alguns casos) que fazia com que todos a odiassem. Como não conheciam qualquer outro motivo para o desprezo que sentiam assim que com ela se cruzavam - sem sequer trocarem uma palavra ou olhar - culpavam o modo como esta se apresentava.  O pior - e mais inexplicável - é que mesmo os cegos a achavam desprezível, a criatura mais repugnante à face da Terra.

O seu aspeto físico era, na verdade, bastante banal. Daquelas caras como há milhares pelo mundo, onde parece que algum Deus se esqueceu de usar a caneta dos detalhes que tornam cada ser humano diferente do outro.


O seu aspeto físico era, na verdade, bastante banal. Daquelas caras como há milhares pelo mundo, onde parece que algum Deus se esqueceu de usar a caneta dos detalhes que tornam cada ser humano diferente do outro.

(Mais um sinal aqui, um olho de uma cor diferente, este vai puxar pela perna esquerda, este tem três mamilos, aquele vai com o nariz torto, toma um cabelo ruivo, aquela tem sardas, mais uma marca de nascença aqui, uma verruga acolá, a este faltam-lhe umas dioptrias e vai usar óculos, aquele precisa de aparelho nos dentes, aquela é gaga, este é muito alto, esta muito gorda, mais um remoinho no cabelo, uma marreca, umas sobrancelhas farfalhudas, outro com pés gigantes, um pescoço demasiado curto, orelhas de abano, aí vai outro sem um dedo, aquela com as mãos tortas e mais um sem uma perna, toma lá uma hérnia, um pé boto, estrabismo…

E já se vão esgotando as possibilidades, que isto de criar milhares de milhões de pequenos pormenores é inexplicavelmente pior do que fazer combinações de matrículas. Por mais que a criatividade atue e lá chegue um fenómeno de quando em vez - como uma linda carapinha em pele de porcelana -, a este ponto de sobrepopulação criar humanos já é mais um trabalho de frete. Os modelos de há anos já foram usados e reusados e mexidos e remexidos e trocados e misturados - apenas com mais uns centímetros no molde e voilá, milhares de sósias espalhados pelo mundo com ínfimas diferenças de Tutankamon e nenhum deles com essa consciência. Era uma sorte as fotografias terem aparecido tão tardiamente. Nem se podia chamar batota.)

Se de um filme mudo se tratasse, esta figurante passaria despercebida entre uma multidão em qualquer lugar do mundo. Misturava-se entre o povo como uma barata que anda pelo chão e se vai escapulindo entre milhares de pés sem que nenhum a pise. Tinha, portanto, uma estatura baixa. 


Mas é impossível que nos cruzemos com alguém e não o julguemos com todos os métodos disponíveis.

Mas é impossível que nos cruzemos com alguém e não o julguemos com todos os métodos disponíveis. O olfato, a audição, o paladar, o tato. Quando foi colocada no mundo, trazia a fórmula do ódio a correr nas veias: e essa repercutia-se de tal modo que fazia com que todos se encolhessem de nojo perante a sua presença.

Pior do que isso, que a quisessem eliminar. Sabia disso porque as vozes lhe diziam.

Mas todas as histórias têm um início: até a da mulher mais feia do mundo. Por isso, rebobinemos esta fita e comecemos no ponto em que tal criatura chegou ao mundo, a gritar descontroladamente como qualquer outro recém-nascido.

O pai era desconhecido e a mãe morrera no parto. A dona do ventre que a carregou era, sem rodeios, igualmente vil e execrável. Mal por Mal, venha a filha do Diabo e escolha. Quem sai aos seus não degenera: o Mal tem genes dominantes e nunca recessivos.

Aquele que é criado aos pontapés aprende, desde cedo, a pontapear. Saltou à corda entre famílias de acolhimento, correu à apanhada por instituições, jogou à macaca entre orfanatos e às escondidas em casas de correção. Acabou por ser encarada como um caso de sucesso: sobreviveu a tamanhos percalços precoces, formou-se e arranjou um trabalho. 

(A semente do mal pode incubar durante muitos anos, mas está lá escondida. De forma mais lenta e biológica ou rápida e com a ajuda de algum adubo (como uma droga de qualquer espécie modificada), ela vai rebentar, florir e desabrochar, contaminando todo o ser humano que a carrega e tentando, como uma erva daninha, roubar a fertilidade e os sinais vitais aos organismos que a rodeiam. Mas já lá vamos: deixemos a lagarta crescer e prosperar até se tornar a traça assassina).  

No dia-a-dia do hospital onde trabalhou, era uma enfermeira aparentemente exemplar. De parcas palavras e sorrisos ainda mais raros, era daquelas que “não aquecia nem arrefecia”. Podia-se dizer que não partia um prato: e a verdade era precisamente essa. Até que, um dia, partiu o serviço inteiro. E atraiu, sádica, todos os que passavam - para que pisassem em cheio nos vidros.

Não se sabe que bicho lhe mordeu. Da noite para o dia, o costumeiro semblante apático transformou-se num olhar parado e demorado, como que conspirante. Ninguém sabia em que raio estava a pensar, mas não devia ser em praias paradisíacas. A não ser que fossem banhadas pelo Mar Vermelho. Ou pelo Mar Morto.


Algo se passara: todos à sua volta se aperceberam. A sua presença passou a causar desconforto e os colegas evitavam, a todo o custo, cruzar-se com ela.

Algo se passara: todos à sua volta se aperceberam. A sua presença passou a causar desconforto e os colegas evitavam, a todo o custo, cruzar-se com ela. Apercebeu-se da exclusão e retirou da mesmo um prazer masoquista. 

Mudou de casa: dos anteriores dois quarteirões que fazia, a pé, passou a ter de empreender um caminho de perto de uma hora até ao trabalho. Mas havia, neste sacrifício, um motivo válido: assim vivia como agora desejava, longe de tudo e de todos.

Não precisava de ninguém. Agora estava como queria: em silêncio. Apenas ainda não tinha entendido o porquê de desejar tanto esta ausência de barulho.

Foi quando os vizinhos se mudaram para o andar de cima, com os seus quatro filhos e dois cães, que os problemas ficaram mais sérios. A meio da noite, o ladrar era insuportável. Após um mês, pareceu-lhe que se familiarizara com aquela linguagem animalesca. Sabia, com toda a certeza, que estes lhe gritavam palavras de ordem. 

Depois, vieram as crianças. Palravam sem cessar, choravam e gritavam e cantavam. Os cânticos foram-se tornando cada vez mais sádicos e passaram a nunca a deixar sozinha. Ouvia-os enquanto conduzia e no trabalho. 

Foi quando começou a ouvir as vozes do casal - a dele funda e calma, a dela mais estridente -, que a convidavam e convenciam a levar facas para o trabalho, a caçar nos bosques perto de casa por qualquer intruso, a acelerar nas passadeiras e esmagar os peões, que a situação ficou insustentável.

Começou a provocar asco em todos os colegas, que alegavam não se sentir seguros no local de trabalho. Chegou, em segredo, a soprar bolhas de ar no soro de alguns doentes e a pressionar a moleirinha dos bebés da maternidade: tudo a pedido das vozes, que se apoderavam cada vez mais do seu livre-arbítrio e discernimento. As mortes escalaram, mas nunca foi associada a nenhuma delas: sabia a estratégia e farejava a fraqueza: as suas vítimas eram as mais indefesas e ninguém põe em causa que se morra de velhice ou de morte súbita.

(Por mais que culpasse a família numerosa do andar de cima pela degradação exponencial do seu humor, não passou impune ao despedimento. Afinal, todos sabiam que vivia sozinha e sem vizinhos, numa moradia de um só piso, longe da cidade.)


Tinha um currículo invisível variado: sabia roubar, matar, furtar, violar.

Além do currículo medicinal que acabámos de conhecer, foi desenvolvendo outras capacidades. Tinha um currículo invisível variado: sabia roubar, matar, furtar, violar. Esquartejar, decepar, estripar, desarmar, afogar, estrangular, esfaquear, dizimar, atropelar, aniquilar. Colecionava Hard Skills ensinadas, ao longo dos anos, pelas vozes que ecoavam e se distinguiam, cada vez menos, da realidade. 

Ele era o mais sádico, o que gostava de um bom espetáculo, o do show off. Adorava ver campos a arder, ouvir tiros de caçadeira, pedia-lhe com frequência que construísse bombas artesanais e armadilhas de caça. Ela era mais silenciosa e exigente: não se contentava com um terror básico, de entranhas à vista e cabeças penduradas. Queria devastação lenta e eficaz: pedras de sal na comida dos hipertensos, urina de rato distribuída por pastas dentífricas no supermercado, gotas de cianeto nas fontes.

Nunca se olhava ao espelho. Tinha como reflexo credível a reação dos outros à sua presença. Embora nada dissessem, via como os seus olhares a perseguiam e injuriavam em silêncio. Se não fossem as vozes a avisá-la da conspiração contra a sua vida que se encontrava em curso, há muito que tinha sucumbido - às mãos de algum inimigo. Sabia que todos a desprezavam. Que estava sozinha. Que a queriam eliminar. Que tinha de retaliar.

A fúria era cega, mas as autoridades não. Por mais discreta e viscosa que fosse nas atuações, acabou por ser apanhada e fechada no fundo de uma cela. As histórias que se contavam sobre ela na prisão faziam tremer até as mais cavalonas: bastava ela sorrir com um canto dos lábios para as outras reclusas revistarem os seus pratos de comida, em busca de uma lâmina contrabandeada no bife ou agrafos roubados de revistas da biblioteca misturados no puré.


Não precisava de parcerias nem de amizades ali dentro: elas estavam todas na sua cabeça.

Não precisava de parcerias nem de amizades ali dentro: elas estavam todas na sua cabeça. Agora já entendia o porquê de todos segredarem à sua passagem, de provocar náuseas, de ser detestável. Abraçava isso. 

Deixara de pôr a música no máximo para não ouvir as vozes. Em vez disso, mantinha-a no mínimo - como uma melodia de fundo para harmonizar com a orquestra macabra que cantava dentro das quatro paredes do seu cárcel craniano. 

Acabaram, eventualmente, por deixá-la ter um quarto só para si. Na prisão não há abébias, mas a direção não quis submeter nenhuma das outras condenadas a tamanho castigo de ter de dormir a centímetros da criatura. 

No final do dia, sempre o mesmo ritual: arrasta-se, na sua túnica branca, até ao quarto. Prolonga os seus olhares e atormenta aquelas com quem se cruza, sempre sem pronunciar uma palavra - e sem ouvir, também, nenhuma de volta.


Entra no quarto e dirijo-me à cama. Senta-se e tiro os chinelos. Enfio-me dentro dos lençóis imundos, lama com lama. Estende a mão para a mesa de cabeceira, onde estão os comprimidos. Ignoro-os. Apaga a luz e entrego-me à penumbra e ao silêncio. Abro os olhos: é à noite que tudo fica mais confuso.


Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente