COMING UP | A Espia
A melhor
forma de contarmos uma história é ter História como pano de fundo. Um elenco de
luxo é a fronteira entre realidade e ficção na nova produção da RTP que volta a
vincar que há muito caminho para explorar no nosso passado histórico sem tornar
um argumento maçador ou previsível. A outra face da História que já conhecemos,
o segundo plano e os bastidores de um país marinado numa guerra na qual não é
praticante, mas é palco. Falamos de uma série histórica, com o ritmo habitual
do género, caprichado com os pormenores de guarda-roupa e os cuidados em manter
a credibilidade como alicerce de uma trama que tem o ADN típico de um show
da HBO e com um suspense que promete adensar-se de capítulo para capítulo. A
Espia pode não ser um marco na jornada pela diferença que a RTP tem tentado
e conseguido trazer, mas é mais um ponto que comprova que a experiência fala
cada vez mais por si com uma série que vem rever a matéria de produções como Cidade
Despida, Conta-me Como Foi, Filhos do Rock ou Auga Seca.
É o resultado da junção de todos os géneros que já nos ofereceu antes mas com
uma inspiração internacional que pode levar o argumento muito mais longe do que
o habitual. Será esta a série que vai vingar lá fora?
A comparação até
pode ser forçada, porém é inegável o percurso que a estação pública tem
trilhado em oferecer-nos séries carregadas de mistério e suspense que não nos
deixam atrás de grandes produções do estrangeiro. Depois de vingar com Filha
da Lei ou Cidade Despida, o género foi absorvido para A Espia
que mesmo que com uma base clássica e histórica conseguiu um casamento perfeito
com a modernidade de um bom mistério. Conta-me Como Foi está aí para
provar que se sabe como trabalhar o nosso passado, e A Espia segue-lhe o
exemplo ao mesmo tempo que educa gerações para um ambiente que vemos muito mais
retratado em grandes produções de Hollywood do que propriamente em solo
nacional. Contudo, como aprendemos nas aulas, Portugal já foi palco de muito, e
por isso numa época em que se educa de forma muito peculiar no nosso país,
talvez a ficção seja o método perfeito para darmos a conhecer as nossas raízes
aos estudantes de hoje. É o chamado timing perfeito com a vantagem de
ter na sua génese um tom e nomes que podem chamar a atenção até do público que
não troca a Netflix pelas generalistas.
A carga política e social que os anos 40 trazem ao drama poderia ser um fator que prejudicasse o apelo para um consumo diferente do habitual, não fosse tudo isto o disfarce para um mistério de suspense que não nos deixa confiar em ninguém e consegue incluir-nos numa dúvida constante sobre as intenções de cada personagem. Por mais que nos pareçam frágeis ou recheadas de princípios e de uma educação fértil na defesa do que é nacional, ninguém parece ser realmente o que nos conta numa primeira impressão. Em apenas dois episódios, já nos conseguiu desarmar de estereótipos e fazer-nos acreditar que tudo tem um preço por muito leal que se possa ser. São as jogadas políticas que tanto ouvimos falar a servirem de aperitivo para conhecermos mais sobre os mandachuvas de Portugal em plena segunda guerra, para entendermos o nosso estado e o papel que tínhamos durante uma aparente inatividade, enquanto se volta a colocar o dedo na ferida para provar que ser Mulher pode ter as suas vantagens num mundo dominado por homens.
Maria João
Bastos volta a provar-se como uma escolha acertada na hora de interpretar
personagens dúbias, e, sem surpresas, veste a pele de uma aristocrata dotada de
uma classe invejável e a aparente imagem perfeita para encobrir o seu papel.
Rose Lawson é a grande responsável por espalhar este novelo dentro da nobreza
nacional sem deixar rasto. Esta é uma das grandes figuras da série e também um
dos maiores acertos do argumento que conseguiu abusar da beleza da atriz para
nos convencer e construir uma figura digna de vilã de Hollywood. Na contracena
direta Daniela Ruah assume os mesmos trejeitos de Marion Cotillard em Allied,
sem que, novamente sem surpresas, fique atrás da fragilidade que a diva do
cinema francês deixou na longa-metragem em que, também ela, viveu uma
infiltrada. Além disso, neste regresso à ficção nacional, Daniela Ruah ganha
por nos conseguir fazer comprar a química com Diogo Morgado, deixando-nos
torcer por um romance aparentemente errado em todos os sentidos mas também uma
das únicas ligações que nos passam a mensagem de pureza dentro de um enredo
onde todos são suspeitos até que se diga o contrário.
Diogo Morgado
apresenta-se na mesma linha que Maria João Bastos com um personagem que se
mantém no limbo e sobre o qual o argumento nos obriga a manter um pé atrás. É,
de resto, um dos maiores pontos fortes da série por conseguir manter o mistério
à sua volta enquanto aparenta ser tanto um herói romântico perfeito quanto
alguém que pode atraiçoar quem se colocar na frente dos objetivos. Fica no ar a
ideia de que estamos novamente a falar de “lobo em pele de cordeiro”, e de como
cada ação pode ter sido muito mais planeada do que nos foi dado a entender.
Será ele uma marioneta nas mãos do Major Beevor e da Miss Lawson ou poderá ser
ele um dos grandes maestros da outra fação? Há uma densidade maior num elenco
ímpar em que todos parecem ter esqueletos bem guardados. Tudo unido por uma
contracena perfeita entre o trio principal de quem era esperada perfeição, e
que não nos falhou em nenhum ponto. O sotaque de Siegriend pode ser um problema
no início, mas quando visto em maratona acaba por ser um pequeno apontamento
que aumenta a personalidade do personagem e nos dá uma base credível para tudo
o que está a ser contado. Na verdade, se assistirmos aos dois capítulos juntos,
acabamos por entender alguns momentos em que Siegriend tem um português
demasiado correto para alguém que nasceu lá fora, e isso sim pode causar-nos
uma confusão maior. É um pequeno detalhe numa história caprichada em que cada
peça se parece encaixar na perfeição deste quebra-cabeças.
Nas contas
finais, A Espia é um obra com pernas para andar e se juntar a outras séries
de culto do catálogo RTP mas com um olhar cirúrgico para um mercado
internacional que se nota não só pela escolha do inglês como segunda língua,
mas por uma trama que preenche as medidas do que se consome no dito culto de
séries de época. É uma jogada com uma amplitude maior do que uma simples série
de TV, e que na via do streaming pode conseguir chegar a um patamar que
lhe dê o reconhecimento que merece fora de portas. Além de um elenco que
assegura cada diálogo no ritmo que algo de época exige mantendo o tom de
mistério acima de tudo o resto. É mais uma pedrada no charco da RTP que merece
ser vista, porque o que é nacional também é bom, e neste caso não estamos assim
tão longe daquilo que vemos noutras línguas.
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