COMING UP | Ramiro [Globos de Ouro]
Ramiro
é o ponto comum entre o simples e o erudito, num storytelling desenhado
ao mesmo estilo de Woody Allen, em que se aproveita o lado rústico para nos dar
a conhecer a história de um homem conformado com o insucesso dos seus sonhos e com a sua vida
pacata. Tudo isto muda no dia em que um segredo que nem é seu lhe bate à porta
e vira tudo ao contrário. Cruzam-se linhas sobre o existencialismo ou a
finitude, mas nada de muito complexo. No fundo, a longa-metragem é um exemplo
de como aproveitar a arte de não ter pressa para contar uma boa trama.
O filme é
simples, em quase tudo, porém bem construído e amarrado a um toque subtil de
humor que coloca em cheque a modernidade em contraponto com os bons velhos
costumes. Tema esse que acompanha todo o plot em vários ângulos. Seja no
desinteresse do protagonista pelos mais recentes gadgets preferindo o doce
tato do papel quer pela mudança da perspetiva comercial. Ramiro insiste em
manter viva a sua atividade, considerada datada e démodé para os dias de hoje.
Ele é alfarrabista, e já pouca paciência tem para aqueles que o procuram como
segunda escolha por não encontrarem o que precisam nos grandes centros. Perdeu-se
grande parte do valor das coisas com o facilitismo dos últimos tempos, e neste
projeto o realizador Manuel Mozos faz-nos repensar o real preço que tem uma obra
de arte, e o respeito que merece. Tudo isto sob a alçada de uma Lisboa antiga, mas
cheia de património.
Despretensioso
em ser um projeto comercial, este dá-nos a chance de podermos admirar o
talento de figuras menos conhecidas do panorama nacional, ou pelo menos de quem
acompanha maioritariamente produtos de televisão ou películas badaladas. É
neste ponto que ficamos de queixo caído com o encaixe do personagem e de
António Mortágua. É um homem real, sem artifícios, sem adereços a mais, apenas
um português como tantos outros que vive uma vida que podia ser a de qualquer
um de nós, com ambições escondidas pela falta de aceitação do público, mas não
da critica. Neste seu caminho por se reencontrar profissionalmente, vê-se envolto
com segredo bem guardado, que esse sim é digno de uma sinopse de telenovela do
horário nobre. A jovem vizinha que apadrinhou depois desta ter perdidos os pais
e da avó deixar de ter saúde para apoiar, é na verdade o fruto de uma relação
que terminou em tragédia. Apesar de não o saber, Daniela tem o pai vivo e bem
perto de si, mas na cadeia depois deste ter matado a sua mãe com quatro
facadas. Um drama escondido pela avó uma vida inteira e que agora é confiado a
Ramiro.
Embrulhado naquela
trapalhada, o homem deixa de saber como agir, procurando entender o que fazer.
Contudo, o seu coração fala mais alto e passa a servir de pombo de correio das
mensagens entre a avó e o pai que está preso, ao mesmo tempo que cuida da jovem
rapariga. Este é o retrato do autor para as várias formas de amor, mas
sobretudo um retrato de lealdade, de companheirismo, da verdade das relações sob
o ponto de vista de um homem que pertence mais ao ontem do que ao amanhã. Regado
ainda com a contracena de Madalena Almeida que se afirma como um talento bruto.
É uma narrativa
de mensagens, de apressos. Um regresso ao passado em pleno futuro, montado num
produto que segue a linha do cinema clássico nacional, com um ritmo muito próprio
e cheio de densidade para lá da cortina de diálogos aparentemente simples. É algo
muito nosso, muito português, e o facto de ser tão dentro da norma faz-nos
sentir algum carinho por aquelas personagens que são pessoas tão iguais a
tantas outras que passam ao nosso lado. É a simplicidade que faz brilhar.
Sem ser para
massas, Ramiro está longe de ser maçador. É bem temperado com um sentido
critico bem peculiar, num texto que sabe jogar com as palavras e com os
momentos, e ainda com um elenco que foge daquilo a que estamos habituados, contudo
tão próximo ao mesmo tempo que não deixa de nos dar a sensação de que os
conhecemos há anos. Tem o defeito de ser demasiado escuro, todavia não deixa de
nos lembrar o lado anacrónico dos paralelismos que o enredo estabelece.
Ricardo
Neto
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