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Fantastic Entrevista | Sofia Rodrigues (Parte 1)


Nesta edição do Fantastic Entrevista, estamos à conversa com Sofia Rodrigues, uma jovem de Setúbal que conta já com um vasto currículo artístico. Cenógrafa, aderecista, figurinista e perfomer, Sofia Rodrigues estudou na República Checa, o que lhe permitiu manter contacto com a cultura de vários países europeus. Fez ainda parte da equipa que trabalhou o guarda-roupa de artistas como Elton John ou Adriana Grande. Nesta conversa, vamos ficar a conhecer melhor a artista de 24 anos.

Quando é que decidiste que querias ser cenógrafa, aderecista e figurinista?

Isto tudo começou porque eu sempre tive muita aptidão para trabalhar com materiais. Por exemplo, o meu avô tinha uma empresa de electricidade e eu andava sempre a montar coisas com LEDs. Na escola básica nós tínhamos uma disciplina que se chamava TIC e tínhamos de fazer um candeeiro. Eu acabei por fazer um candeeiro enorme, cheio de LEDs, montes de cores, tinha programas e mudava... Como o meu avô era electricista – ele já tinha morrido entretanto – eu acabei por compreender como as coisas funcionavam. 

Também sempre mexi muito com tecidos, com desenho... No 9º ano, num acto mais rebelde porque não eram o caminho que tinham traçado para mim, fui para a António Arroio. E lá eu tive um ano comum em que experimentei as áreas todas. Por outro lado, eu já trabalho em teatro desde os 16 anos e fiz um espectáculo para o Peter Maxwell Davies, que é um autor inglês. Fiz a Cinderella, uma ópera pantomima com crianças, entre outros. Decidi que havia de experimentar a Escola Superior de Teatro e Cinema e entretanto acabei por seguir este caminho dentro da ESTC, não percebendo muito bem o que estava a tratar. Acabei por escolher isto e tenho estado a trabalhar na área desde aí.

Falaste-nos do teu avô e da forma como ele influenciou, em parte, o teu caminho. Como é que isso aconteceu?

Aconteceu quando, por exemplo, eu passei muito tempo no Hospital de Santa Cruz, quando o meu avô esteve internado, em coma. Como não sou uma pessoa materialista, o que mais me divertia era uma máquina fotográfica, um papel e uma caneta. Eu tinha 6 anos passava muito tempo a desenhar lá. Tenho folhas e folhas e folhas de desenho. Enquanto a minha mãe e os meus avós estiveram ocupadas com a parte burocrática e de saúde, eu tive ocupada a desenhar. E depois foi um gosto que eu adquiri e que eu fui desenvolvendo a partir daí – a fotografia e o desenho. Começou tudo aí, eu nunca me tinha apercebido. Uma coisa má tornou-se numa coisa boa. Todo aquele processo foi tão doloroso que a forma que encontrei de ultrapassar foi através do desenho. Porque o meu avô fez sempre o papel de meu pai.

Em relação ao teu percurso profissional, quando foste para a Escola António Arroio já sabias que querias cenografia?

Não. Eu fui para a Escola António Arroio porque eu não concordo com o método que se pratica na maioria das escolas. É uma estrutura salazarista, com os  alunos sentados e a secretária do professor acima. Na António Arroio eu encontrei professores que não eram só meus professores e são neste momento meus amigos. Na altura, eram até, meus colegas de trabalho. Estes professores nunca se colocaram na posição “eu estou acima de ti”. Houve sempre uma abertura suficiente para dizer “nós estamos no mesmo grau e aquilo que eu aprendo contigo, tu aprendes comigo e vice-versa”. A António Arroio ajudou-me muito nesse sentido.


Como formação frequentaste o curso de Técnica de Realização Plástica de Espectáculo com 15 anos. Consideras que para o trabalho que fazes actualmente, esta formação foi indispensável?

Sim, claro. Porque as bases de trabalho que eu tenho foram todas aprendidas na António Arroio. Tudo o que eu aprendi na ESTC foi a consolidar o meu trabalho – sobretudo a parte técnica. Mas todas as bases que eu já trazia permitiam a evolução do meu trabalho. Não o início, mas o processo do trabalho. 

Se não tivesses andado neste sítio teria sido mais difícil?

Se eu não tivesse andado lá, iria começar do zero. Eu penso que existem muitas lacunas no nosso ensino. O pós-Bolonha encurtou tudo. Um curso destes nunca poderia ter três anos. Um curso destes tinha de ter mais tempo. E eu tive a sorte de ter dois anos anteriores na António Arroio. E na verdade foi isso que realmente me permitiu colmatar as lacunas com que fiquei na António Arroio.

Fizeste Erasmus na DAMU, na República Checa. O que é que esta experiência te trouxe em termos profissionais e em termos pessoais?

A nível pessoal foi muito enriquecedor porque eu estive noutro país que, neste momento, tem uma cultura muito mais desenvolvida que a nossa e é um país que tem muito menos recursos que nós mas que valoriza muito mais o trabalho artístico. Se eu conhecer alguém na rua, em Portugal, e disser que sou cenógrafa, ninguém sabe o que é a cenografia. Mas se na República Checa eu disser isso, eles ficam doidos e pedem para me sentar e para conversar e para explicar o que estou a fazer – e são pessoas que não me conhecem de lado nenhum. Portanto, existe uma valorização da cultura que nós não temos. 

Notaste muitas diferenças também no ensino?

Esta faculdade em que eu andei, a Akademie Muzickych Umeni V Praze (Academia de Artes Performativas em Praga), que é um conjunto de agrupamentos, permitiu-me consolidar a nível de reflexão. Porque tudo o que eu tinha cá era muito prático: era fazes uma vez as coisas e está aprendido. Lá não, as coisas são repetidas. Lá existia uma coisa que eu valorizava: o professor não ficava contigo na sala de aula. O professor vinha dar uma orientação e voltava para a semana. “Eu vou estar aqui sentado contigo todo o dia e vais estar a seguir o teu trabalho pelo meu pensamento”.  Porque a Arte não tem uma resposta certa ou uma resposta errada: ela tem é de ter uma resposta fundamentada. É como o urinol do Marcel Duchamp: mas porque é que aquilo não é arte? Está fundamentado porque é que é arte; tudo isto está fundamentado. É por isso que nós temos História da Arte hoje e tudo isto nos é incutido, ensinado.


Então a própria forma de funcionamento da faculdade era diferente?

O meu projecto final de Erasmus foi no Teatro Nacional, o Narodni Divadlo. Eles facilitaram-me tudo, cederam-me todos os materiais. Existe uma coisa lá que não existe cá: os alunos não pagam propinas, têm direito a um gabinete, a folhas, a lápis, a canetas, têm direito a pincéis, a tintas. E o que me ajudou muito nisto principalmente foram as aulas a desenho nu. No sentido em que era uma lacuna que eu tinha na faculdade de cá, ruptura que eu tinha a nível de desenho de figura humana e que preenchi lá. Porque isso é preciso para um desenho de figurino. Um desenho de figurino não é um desenho de frente, costas e lado; é um desenho que tem de ter expressão, tem de ter sentimento. Tem de ter alguma coisa que transmita que a personagem é má, boa, que é forte, que é fraca, que é marreca, que é velha. E ser velha não é ter o cabelo branco.

Então, estudar em Praga foi uma experiência bastante diferente do que esperavas?

Praga fez-me muito bem, porque as coisas eram-nos muito facilitadas. Estávamos no centro da Europa e havia uma empresa chamada Student Agency, com autocarros a cinco euros para qualquer dos países. Por isso, eu podia ir hoje ver um espectáculo à Áustria e voltava amanhã para ter uma aula. Se eu quisesse ir ver um bailado à Polónia, eu ia e voltava. Eu queria ir à Alemanha, a Berlim, eu ia na sexta-feira a final da tarde e ao domingo estava de volta. Por isso eu não posso dizer que o meu Erasmus tenha sido só na República Checa.  Eu estive na Áustria, na Hungria, Eslovénia, Eslováquia, na Polónia, em Inglaterra... até na Holanda. Na volta, até arranjei maneira de ir parar a Madrid, à Real Escuela Superior de Arte Dramático, e acabei por juntar estas coisas todas para complementar o meu trabalho. A minha base foi tirada em Praga mas tudo isto complementou o trabalho que eu faço hoje.

E esta tua experiência de Erasmus abriu-te portas quando voltaste?

Aquilo que me foi dito foi que um aluno que tem formação no estrangeiro tem mais facilidade em arranjar trabalho. Mas sinceramente, eu vejo que está tudo igual. Porque eu já tinha trabalho cá anteriormente. O pensamento seria “agora volto”, vou ter novas propostas, mais aliciantes ou vou mandar currículos. Mas o português valoriza muito tudo o que vem de fora, em vez de valorizar o que vem de dentro. O que vai para fora é muito valorizado lá fora, não é cá. Portanto, eu não senti diferença.

Que diferenças é que encontras ao nível artístico entre o teatro na República Checa e o teatro em Portugal?

O teatro checo mantém-se todo mais ou menos na mesma linha. A estrutura arquitectónica da cidade e do país - eles não têm quase sol, é tudo muito cinzento, apagado - reflecte-se no tipo de arte que produzem. O teatro checo é muito angustiante. Em termos de público, as salas estão sempre cheias, imensas filas para bilhetes, salas esgotadas todos os dias – que é uma coisa que me entristece um bocadinho em Portugal. Nós temos teatro mas o próprio teatro e as pessoas do teatro criam uma elite de pessoas que vão ao teatro.


Mas o teatro devia ser valorizado em qualquer lado...

O teatro é a nossa vida. O teatro é uma representação da vida, do social. O que acontece em Portugal é que a linguagem do teatro nem sempre é acessível a todas as pessoas - mas acredito que vá acontecer. É por isso que a maior parte das pessoas só conhece a Revista, porque acham que o resto do teatro é "uma seca". Existe uma grande valorização do teatro de Revista porque as pessoas realmente desconhecem o outro tipo de teatro. Vamos chamar ao teatro uma bola central. Depois tem vários ramos, como tudo na vida. E eu não acho que exista uma publicidade aos outros tipos de teatro. Neste momento, as pessoas que vão ver espetáculos são pessoas do teatro ou do campo artístico. De resto, as pessoas não têm interesse, não se estimulam ou não são estimuladas a ir.

Achas que este problema se estende à cultura em Portugal, no geral?

Sim, a cultura em Portugal não é valorizada. Não tem o lugar que devia ter. A percentagem que recebemos de fundos para o mundo artístico é muito pequena. Há muito pouca gente que tem acesso. Há muito pouca gente que alguma vez foi ver um espectáculo que tenha dito “isto é espectacular”. As pequenas companhias em Portugal trabalham com poucos recursos. E podemos utilizar a expressão do desenrasca. E o desenrasca não faz com que tu evoluas. Tu tens de investir para receber. As coisas funcionam assim. Na República Checa, por exemplo, as pessoas têm uma mentalidade muito diferente da nossa. Nós também somos pessoas muito mais fechadas, para nós próprias. Lá está, porque também estamos mais isolados do que devíamos estar. E sendo mais central, aquilo acaba por ser um sítio de passagem de artistas de turistas que vão deixando coisas e coisas e isso acaba por enriquecê-los. Mas nós estamos a fazer esse caminho para chegar aí.

De que forma esse caminho está a acontecer em Portugal?

Estão a nascer novas companhias. Malta nova, malta jovem que não entende que o teatro é só Shakespeare. Porque realmente o teatro tem Shakespeare mas nós temos que dar valor a textos de novos autores. E enquanto nós não tivermos a capacidade de perceber que o teatro é para todos, não o podemos só fazer para um grupo específico. Enquanto isso não acontecer, eu não posso dizer que o teatro checo e o teatro português estejam ao mesmo nível. Eu vejo claramente uma diferença enorme a nível de orçamento. Quando vês um espectáculo rico, ficas presa ao espectáculo. Neste caso, eu na altura nem percebia a língua, mas não era necessário, porque a imagem absorve-te. A imagem faz com que tu cries, com que tu tenhas a tua imaginação, com que tu cries ideias. Até tudo podia ser mudo que tu ias perceber aquilo na mesma. O investimento que é feito a nível de orçamentos, cenografia, figurinos, adereços, iluminação é enorme. Também a nível de formação dos próprios atores e bailarinos, isso não existe cá neste momento.

Achas que também há problemas em termos de comunicação e divulgação em Portugal?

Sim. Por um lado, acho que há uma ótima comunicação do Teatro S.João do Porto, do TECA (Teatro Carlos Alberto), do Teatro Nacional D.Maria II ou da Companhia Nacional de Bailado, por exemplo. Todos esses grandes espaços têm muita força. Mas depois temos outros grupos que deveriam ter o mesmo tipo de força mas que não o têm porque, lá está, é a história do “desenrasca-te”.  O que as pessoas recebem, também não permite fazerem mais. Eu acredito que há vontade, mas, neste momento, a maneira como nos encontramos também não permite isso. Estamos estagnados. Eu acho que é mais nesse sentido.

Fim da 1ª Parte da Entrevista - CLIQUE AQUI para ler a 2ª parte

Convidada: Sofia Rodrigues 
Entrevista: Rita Pereira
Novembro de 2017