Duplo Clique | "Humor de última hora"

Agora a Sério. É assim que se chama a nova sitcom da RTP, ficção de humor bem português e um retrato tristemente credível da realidade. Nesta série de episódios, quase tão breves quanto a validade de uma notícia no tempo do imediatismo, fala-se de tudo o que é sério em tom de gozo e em moldes assumidamente estereotipados. A aparição do humor na grelha generalista faz desta produção um mega-acontecimento, digno de pararem as rotativas, ou simplesmente parar com o zapping. Dá tarde e a más horas, mas vem a tempo.

             

O novo programa da RTP apareceu de repente, como uma notícia de última hora. Um dos primeiros pontos a destacar é o facto de ser produzido pela RTP-Porto e por jovens estreantes na Academia RTP, numa primeira experiência profissional. Nesse ambiente de produção integra-se a dinâmica de grandes profissionais, um elenco constituído por Samuel Alves, Ana Brito e Cunha, Luís Aleluia, Ricardo Castro, Carla Salgueiro e Carlos Areia. O texto é de Henrique Dias, Frederico Pombares e Roberto Pereira e a Realização de Eduardo Gradim, com Música original de Serafim Borges. 

           

Agora a Sério começa por fazer manchete graças ao ambiente laboral em que se desenrola a ação. A pequena imprensa, que mal respira ligada à máquina da publicidade, surge com todas as deficiências, reflexo, em pequena escala, das assimetrias socioeconómicas que grassam nos grandes órgãos noticiosos do país. Fazia falta o aparecimento do jornalismo na ficção e a sua caricatura. Parecendo que não, talvez assim mais pessoas tomem consciência das dificuldades que o jornalismo local enfrenta, preso a condicionantes logísticas e económicas. 

 

            

 O grupo de personagens cruza-se n’O Matutino, “um protótipo a que nenhum jornal poderia escapar”, segundo se lê no site do programa. É aí que Gonçalo (Samuel Alves), de 35 anos, vê definhar as suas aspirações enquanto jornalista de imprensa séria, à medida que tem de lidar com Mascarenhas (Luís Aleluia), o jornalista mais velho da casa, e Filipa (Ana Brito e Cunha), uma Diretora cheia de aparências e vazia de inteligência. “Pretendendo retratar um país cadente e em fanicos, esta série descobre e serve-se dos novos estereótipos sociais para criar uma identificação comum na dificuldade em que os jovens têm em encaixar-se no mercado laboral”, pode ler-se no site.

Todo o elenco comprova que os papéis foram bem entregues. Samuel Alves, transitando de outros projetos de ficção do canal, move-se com habilidade no registo cómico e a sua expressividade não deixa o espetador indiferente. A contracena com Luís Aleluia é sólida e absolutamente fantástica, pois cruzam-se duas gerações de atores no seu melhor. Ana Brito e Cunha, sem surpresas, agarra o perfil cómico com o seu cunho pessoal, visível nos trejeitos e entoação dos diálogos. 

Tratando-se, por definição, de uma sitcom, pode esperar-se um texto recheado de trocadilhos e cómicos de linguagem. É o que Agora a Sério proporciona, um humor apto a ser decifrado mais do que ser simplesmente visto, ainda que a construção física das personagens seja obviamente pensada para servir os tais estereótipos e, nalguns casos, se tornar risível. Além do texto fluido e cheio de referências imprevisíveis, merece referência a Realização e a Cenografia, esta responsável pela criação dos espaços não muito grandes, mas suficientes para acomodar a ação (atendendo ao orçamento da produção e à repetição dos locais das cenas).  

             

O Matutino não será, decerto, um retrato fiel da imprensa regional do país, ainda que mesmo algumas notícias de jornais de grande tiragem rocem aquilo que para os leitores é supérfluo e ridículo. Numa balança cada vez mais desequilibrada, a verdade é que são as notícias mais triviais e escandalosas que movem cliques e likes, e é isso que paga os ordenados aos jornalistas. Agora a Sério constrói, mais do que tudo, uma crítica à situação de dificuldades que os jovens licenciados atravessam, não só no jornalismo, mas no mercado de emprego em geral, e fá-lo convenientemente.

A RTP apresenta um humor de distribuição gratuita, como o jornal, incapaz de levar às dores de tanto rir, mas convidativo a uma reflexão. Pode ser que agora seja a sério.

Agora a Sério, para ver de terça a sexta-feira depois de Quem Quer Ser Milionário?, na RTP. 

Duplo Clique - 53ª Edição

Uma crónica de André Rosa