COMING UP | Santiago
Santiago, o thriller que faz a ficção nacional mergulhar de vez no slow burn, num salto de fé onde o drama é contado dentro dos limites do realismo e se discute esperança, depressão e a importância e significado que religião tem. Santiago tem o existencialismo mundano numa trama intensa contada com passos lentos para que os personagens floresçam à nossa frente sem precisarmos de explicações extra.
Ousada e assente numa proposta que agrada de fio a pavio vários tipos de público, Santiago é o elevar da fasquia. Vamos falar-te sobre tudo o que carrega este novo título da OPTO em mais uma edição do Coming Up. Fica connosco, há muitas considerações a fazer.
Maturidade é a palavra de ordem em Santiago, onde a fé o fio condutor para falarmos das dores de crescimento em diferentes idades e sobre o quanto mudamos e o quão perdidos estamos em vários momentos da nossa vida. Nessa jornada de autodescoberta a história da série arranca e coloca a nu os personagens, eles não nos são propriamente apresentados, mas nós conhecemos as suas dores e dilemas.
É um trabalho de construção logo à partida nos faz entender que estamos a assistir a uma produção que não está simplesmente a contar uma história, mas que quer sim trazer ali uma mensagem para a vida de quem assiste. E consegue fazê-lo em pouco tempo e com um argumento que nos conquista por ser orgânico, cru e próximo.
E falemos do grande diferencial de Santiago: As Jornadas de fé que eventualmente podem não ser compreendidas por toda a gente.
Por mais que existam muitas e boas longas-metragens que mostram isso, como Fátima de João Canijo que é um ótimo exemplo, essa devoção e tudo o que ela carrega é algo muito mais emocional que aquilo que transparece no ecrã. É um daqueles casos em que podemos usar o bordão que diz que só quem já passou pode, de facto, relatar verdadeiramente o que significa.
Fazer uma peregrinação, tal como este argumento explica e bem, não está apenas ligado à busca pela fé ou na crença numa entidade sobrenatural. Muitas das vezes, esses caminhos são pontos de reencontro, pontos em que pelo esforço físico extremo somos obrigados a expelir a nossa dor, e nesse tempo, a nossa mente procura encontrar a resposta sobre o porquê de termos embarcado naquela aventura.
Tudo isso fica explícito em Santiago, com um argumento que não limita a olhar para o lado crente, mas prova uma e outra vez a importância daquele caminho, daquela peregrinação enquanto nos faz entender que esta é uma experiência transformadora.
Os personagens são colocados ali como adereço dessa mensagem maior que é passada de uma forma bonita, sem floreados e que reflete bem sobre o lado bom, nem sempre tão visto, da fé. É fácil, sobretudo nos dias que correm assistirmos a visões vilanescas sobre a Igreja ou sobre a fé, mas também é crucial entendermos que essa dimensão tem um outro lado que une as pessoas em prol de uma vontade ou de uma força comum.
Todos nós em algum momento passamos por situações sobre as quais precisamos de respostas que não pareciam estar ao nosso alcance e na maioria das vezes essas respostas surgem quando saímos da nossa zona de conforto.
A forma como tudo isto é retratado sem precisar de monólogos explicativos ou de embelezar as coisas é um dos grandes pontos fortes de Santiago. E a isso junta-se a simplicidade, que revela a naturalidade com a qual querem trabalhar esta narrativa. Tudo é contado de forma orgânica e mundana.
A ação, ou melhor, o drama da série é protagonista e função secundário ao sabor das mensagens que são o ingrediente principal de Santiago, mas mesmo sem se debruçar inteiramente sobre a trama central, o enredo consegue evoluir tranquilamente e deixar-nos às voltas para tentarmos montar o puzzle e entender o que se passa.
Com as devidas mudanças, por se tratar de uma série e não de um filme, Santiago, consegue trazer um ritmo muito semelhante àquele que é um dos melhores slow burns do cinema recente, a longa-metragem espanhola Contratiempo. O enredo é tratado com pinças para fazer com que existam eventos que permitam a parte misteriosa deste texto avançar, mas fazendo deles parte das circunstâncias, sem parecer que estão a forçar eventos para tornar a série mais sumarenta.
Para além disso, todo e qualquer desenvolvimento desse lado da história acontece com um background cuidadoso e realista que nos faz encaixar cada morte ou cada situação inusitada como algo natural que poderia estar a acontecer na nossa realidade.
É mistério do bom, no sentido em que a história consegue trazer um lado fidedigno sem perder aquele tempero de um bom thriller. E nisso a forma como a história é contada foge um pouco dos padrões nacionais e aproxima-se um pouco das produções contemplativas e existencialistas, mas ritmadas, do cinema espanhol, onde cada detalhe é cuidado de uma forma artística, sem sacrificar o ritmo ou o nosso interesse nos protagonistas.
No primeiro capítulo Santiago dá-nos todo o embalo de maturidade para que consigamos identificar o tipo de série que temos à frente, é um divisor de águas para um público que procure algo mais comercial, aqui talvez não encontre isso.
Mas é nesse primeiro episódio que temos plena noção de que vamos entrar numa história que ao mesmo tempo que tem mensagens maiores, é altamente intimista com pontos de identificação sobre o que significa crescer. E não falamos apenas em crescer no sentido de um adolescente se tornar adulto, mas do crescimento continuo fruto das vivências.
Em simultâneo, falam-nos da castração de liberdade enquanto relatam a vivência de uma família que está gasta e sem remédio, mas que continua a lutar para manter a instituição em que acreditam, numa realidade que pode parecer utópica mas que continua a ser comum nos dias que correm.
Em alguns detalhes, e excluindo desta equação os segredos por detrás da personagem de Ivo Canelas, a relação dele com Ana de Lúcia Moniz tem alguns pontos em comum com Scenes From a Marriage, e se seguir por esse caminho então podemos antever várias cenas que nos vão dar choques de realidade.
O segundo episódio já é um pouco diferente, mais robusto em termos de narrativa, e com mais doses de drama, mas com alguns momentos poéticos que nos despertam interesse.
A relação de Ana com o sogro e a posição em que ele se coloca sobre ela é um relato fidedigno da postura que muitos patriarcas exercem nas suas famílias, e o monólogo de Lúcia Moniz encerra com chave de ouro esse arco, voltando a frisar que este Caminho de Santiago é um percurso de libertação para a personagem que nós vamos poder acompanhar de uma posição privilegiada.
Não é apenas na história que Santiago acerta. O elenco, tal como já previsível com os nomes que tem, consegue entregar atuações que nos prendem logo de início. Lúcia Moniz encontrou na OPTO, pela segunda vez, um local onde pode expressar a sua arte de uma forma muito melhor que aquela que temos visto em televisão.
Nesta Ana volta a carregar às costas a história de uma mulher real, como aconteceu em Listen e Na Porta do Lado, e consegue fazê-lo com crueza e humanidade. Não nos ocorre melhor forma de definir o seu papel aqui, porque esta mulher é desenvolvida com características tão próximas e empáticas que nos conquista, novamente, pela naturalidade tornando-a num bom barómetro sobre a proposta da série.
Com menos espaço de desenvolvimento, Ivo Canelas continua irrepreensível, e aqui um pouco mais fora da zona de conforto do que em Causa Própria, por exemplo. Deixa-nos com a sensação de que há mais camadas ali e que ainda só tivemos uma primeira impressão, mas não o conhecemos, ao contrário de Ana.
Também fora da zona de conforto temos Bárbara Branco num papel onde não estamos habituados a vê-la. E porquê? Porque este é um projeto de ficção mais maduro, com uma linguagem simples, mas com muito peso nas entrelinhas do texto. Existe profundidade, não são apenas personagens que servem a história. Eles realmente têm voz, como qualquer pessoa que caminha neste mundo.
A Carmen de Bárbara Branco, mesmo com alguns estereótipos na sua construção, utiliza esses chavões que lhe atribuíram para se tornar numa bandeira que representa o quão decisivas são as nossas escolhas numa determinada fase da vida, mesmo sem termos plena noção disso.
Por fim, para finalizar o núcleo central, Leonor Vasconcelos regressa ao mundo das séries depois do merecido destaque em Chegar a Casa e mesmo com poucas linhas deixa antever que a sua Lourdes é potencialmente uma das personagens mais ricas desta história.
Em suma, Santiago é uma trama madura, que une pontos incomuns que sempre funcionaram em separado, mas que não tínhamos a noção que pudessem fazer sentido juntos. E é nessa ousadia de juntar ingredientes diferentes que Santiago nos conquista.
Há várias parecenças com as temáticas das tramas da HBO, sobretudo no foco em contar histórias que nos parecem tão credíveis que quase soem a um “baseado em factos verídicos”. E este “comparativo” é interessante porque já não é a primeira vez que referimos a semelhança no género, mas na OPTO parece existir um sentido eclético melhor até do que o serviço da Warner.
Temos uma Lista ou um Praxx que conseguem encaixar num target mais comercial, assim como O Clube, e que fora desta plataforma talvez ganhassem destaque na Netflix, enquanto coexistem no mesmo catálogo os dramas da vida real que se fossem feitos lá fora estariam recheados de prémios como A Generala, Esperança ou agora Santiago.
Talvez este seja mais um passo para quebrarmos o preconceito com a nossa ficção. E falando na produção nacional, em janeiro apontamos que Causa Própria seria a melhor série do ano, e não errámos, mas Santiago merece o destaque de um honroso segundo lugar que tem arcaboiço suficiente para nos levar a marcar as sextas-feiras como dia de ver um novo episódio.
Esperemos que a harmonia entre a densidade e as mensagens se mantenha, porque a continuar assim podemos pelo menos dizer que Santiago será facilmente uma série lembrada pelos próximos anos.
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