COMING UP | Santo
Nós, utilizadores da Netflix, estamos habituados a timelines desafiadoras, a histórias que nos obrigam a conectar pontos e mistérios fortes com detalhes macabros que nos chocam. Porém, Santo, a nova aposta da gigante do streaming levanta a fasquia em todos estes pontos e puxa tudo tão para cima que passa do ponto e acaba por queimar toda a carne que tinha no assador.
Com uma intriga pouco sustentada e que se arrasta por mais episódios que o necessário, Santo tem uma estrutura desconexa que é feita de forma gratuita, que em nada abona a favor da série e que ao longo da temporada se prova como um erro de partida.
Santo é um claro exemplo de um argumento que nem mesmo com atores carismáticos consegue vender-nos verdade e resvala em erros grotescos que tornam a série numa maratona sofrível.
A ideia que Santo nos deixa é que existia um ponto de partida e começaram a escrever sequências livres na expectativa de que fizesse sentido no final. Lamentavelmente não foi o caso e explicamos-te porque na edição desta semana do Coming Up. Fica connosco!
Com um trailer vistoso e uma trama que nos prende pelo inusitado e pelas ligações que estabelece entre dois países distintos através das correntes de tráfico, Santo aumentou-nos as expectativas.
O elenco, que tem nomes de competência comprovada, deu-lhe a priori o carimbo de qualidade. Mas Santo trai a nossa confiança de uma forma que há muito não se via num projeto da Netflix.
Vazia, mal-amanhada e inconsistente, Santo parece uma aventura de primeira viagem de um autor que ainda está a descobrir o seu estilo, a qualidade que antevíamos traduziu-se numa realização que é, no mínimo, peculiar.
Entre cortes abruptos e uma banda sonora que acerta o tom das cenas, mas que não tem a transição adequada, nem o lado técnico ajuda a subir a qualidade do texto de Santo.
À margem disso, aquilo que mais incomoda nesta série é, sem dúvida alguma, a passagem de tempo. Contada em vários tempos, a série escuda-se de um registo de flashbacks e flashforwards que são, também eles, um pouco abruptos e que não deixam situar sobre o presente da série.
É um recurso com o qual estamos acostumados? De facto, é, porém aqui é totalmente desnecessário e só nos ajuda a perder o interesse na história, porque com tantas idas e vindas não há conexão com os personagens que resista.
Condenada à partida por este primeiro episódio que é uma pequena amostra do caos, Santo consegue sabotar-se ainda mais quando no episódio quatro utiliza todo o tempo do capítulo para unir de forma cronológica todos os flashforwards e flashbacks que utilizou nos primeiros episódios.
É como se os autores da série tivessem a noção de que o que estavam a contar não era claro e voltassem atrás para apresentarem um resumo, com as mesmas exatas imagens, as mesmas cenas, e pouco conteúdo novo. E quando dizemos pouco, é mesmo muito pouco.
Na verdade, a série poderia ter começado ali, no quarto episódio, mostrando o quão desnecessária é a divisão de Santo em seis capítulos, quando na verdade a narrativa não tem sumo para sustentar mais do que três episódios de quarenta minutos.
É uma confusão gigante e que aflige qualquer maratonista ao fazê-lo entender que perdeu o seu tempo, porque o conteúdo novo que tem pra oferecer no momento em que apertamos o play é uma repetição.
No fundo, mesmo que o recurso fosse utilizado para nos colocar a montar as peças do puzzle, essa proposta cai completamente por terra quando este episódio surge. Por mais que puxemos pela cabeça dificilmente encontraremos uma justificação para esta opção criativa.
Mas enquanto tentamos desculpar estas opções de edição acreditando que sejam escolhas vanguardistas, numa desculpa pouco convincente, mas que nos faz, pelo menos, seguir em frente para o próximo episódio, o mesmo não podemos dizer de algumas escolhas da realização que por se renderem ao facilitismo tornam tudo muito mais previsível.
Uma boa amostra deste facilitismo clichê (que inclusive é repetido duas vezes durante as cenas de ação de Santo) acontece quando duas personagens estão a conversar entre si e uma se afasta aproximando-se do plano da câmara para justificar o seu salvamento de uma morte certa.
Se no primeiro caso, que acontece quando se dá a explosão de uma das motos, até podemos dar o benefício ao clichê, quando a mesma sequência é repetida no carro quando Millán se afasta para fumar um cigarro, aí já não há nada que possamos dizer para defender. Foi um caminho básico, raso, e ainda pior que isso, repetido. O momento que é um ponto de viragem para um dos grandes protagonistas da história perde o impacto que a cena no papel lhe quer dar e só aumenta a nossa vontade de desistirmos da história ali mesmo.
Parece, em certos momentos, que existe alguma preguiça, falta de arrojo. É como se tivessem arriscado no arranque da série com uma proposta ousada de contar a série em diferentes timelines, percebendo depois que nada disso resultou como esperado e para desfazerem o erro passassem a jogar pelo caminho mais seguro possível.
Mas há mais exemplos menos bons a apresentar. Um deles acontece numa cena em que Cardona toma um banho “santo”, se é que esta é designação correta, uma cena que depois se perde por falta de contexto e que por ser tão desconexa com o resto da ação quase que dá a entender que foi feita apenas para ter um momento de nudez do galã Bruno Gagliasso.
Vamos acreditar que não tenham resvalado para algo tão gratuito e acreditar que há uma profundidade maior ali que está mal explicada. Facto é que a dúvida fica no ar, porque de todas as cenas soltas da série esta foi aquela que ficou avulso, sem se encaixar na lógica da história.
A técnica é, sempre, uma parte importante da qualidade de uma série, mas mesmo assim já conhecemos vários casos em que a trama é tão bem alicerçada que nos prende para lá do visual. Com Santo nem isso acontece.
A proposta é bastante intrigante, tem pano para mangas, mas à parte de ser mal desenvolvida, parece ter ganho tempo demais para ser contada. Santo é um claro exemplo de um filme que foi esquartejado para se tornar numa série episódica, e um exemplo claro sobre como as duas linguagens não se devem entender como iguais.
Passamos horas e horas a dar voltas na mesma roda-viva, com cenas repetidas e diálogos maçadores, cuja única explicação que encontramos para eles é o facto de não existir mais nada que naquele momento da ação pudesse ser acrescentado.
A princípio sentimos ares de Tokyo Vice, da HBO Max, e Criminal, da Netflix, mas rapidamente essa sensação se desvanece perante a falta de camadas da história. Com um universo tão rico como o mundo do tráfico, parece que Santo se ficou pela rama e não saiu do lugar comum.
As diferentes timelines não ajudam em nada ao contexto e a reforçar o nosso entendimento com a estrutura da organização, mas nem tudo pode ser desculpado com isso. Existem muitas brechas no texto onde poderiam ter incluído um pouco mais de conhecimento, de aprofundamento sobre a organização gerida por Santo.
A dada altura é notório que o texto privilegia as cenas de ação e se perde no jogo do gato e do rato, num esquema que funciona muito bem em qualquer história criminal, mas que já está batida que só ajuda a reforçar a nossa perceção de que tudo isto é um clichê elevado ao expoente máximo sem rumo e sem orientação.
Baseando-se em conceitos gerais de organizações de mafiosos e desperdiçando uma excelente oportunidade para revisitarmos a realidade das favelas brasileiras, que podia, pelo menos, tocar-nos pela empatia e pela memória afetiva de quem já viu Cidade de Deus, Santo entrega-se à ausência de profundidade e tenta segurar-se no senso comum por falta de empenho em mostrar algo novo.
Realização, edição, e o elenco? Santo é um exemplo claro de como nem o melhor elenco consegue o milagre de salvar um mau texto.
Bruno Gagliasso faz o melhor que pode com um personagem que tem um perfil poderoso, mas que desagua num misto de herói romântico com galã de um filme de guerra. E não é por falta de talento, porque temos alguns exemplos na carreira do ator que nos mostram que ele sabe entregar personagens dúbias convincentes, veja-se o caso de Dupla Identidade, que continua a ser um dos melhores trabalhos do seu currículo.
Cardona tinha tudo para carregar a série nas costas mas é arrastado no tsunami de erros de Santo e nem ele se salva do carimbo de personagem chato e estereotipado.
Saltando para o outro protagonista, Millán, pelo menos com ele existiu um pouco mais de justiça. Com arcos um pouco mais sumarentos e que trazem mais nuances ao personagem, Raúl Arévalo consegue entregar a figura mais rica da série numa atuação que é digna de nota por ser, talvez, a única a quem os argumentistas deram embalo para o levar aos holofotes.
Também ele é castrado com alguns diálogos repetitivos. Pelo menos vemos um pouco mais da sua esfera, sabemos que ele tem mais preocupações, que tem virtudes e defeitos, não é um personagem plástico que está ali simplesmente para cumprir um propósito dramático.
E Victoria Guerra? A Bárbara de Victória está longe de figurar entre os seus grandes trabalhos como atriz. E não falamos de falta de empenho, de talento ou de vontade, mas falamos sim do facto de lhe ter caído no colo uma personagem indefinida, que carrega um dos maiores plot twists da série, mas sem que alguma coisa no texto até ali o indique.
Parece ter sido um recurso de última hora para trazer o elemento surpresa, mas tornou-se em algo ingrato para a atriz que nos vendeu até então um determinado tipo de papel para depois tirar a máscara numa situação à qual podemos chamar, no mínimo, inusitada.
Para além disso, faltou-lhe espaço para conhecermos mais dela. Talvez se tivessem poupado nas repetições do quarto episódio existisse mais espaço para ela mostrar mais personalidade.
Uma premissa deitada fora, numa história rasa que coloca ousadia nos sítios errados e transparece a falta de rumo num desenrolar desconectado, pouco credível e que em muitos momentos se contradiz.
Santo é uma experiência que não deu resultados e que parece querer mostrar ao público que se apercebeu que errou, numa lógica um tanto ou quanto confusa que transformou aquilo que até então apelidávamos de confuso em mau.
Talvez estejamos a ser cruéis de mais, mas Santo parece ter-se sabotado em vários momentos, parece que a equipa atirou a toalha ao chão e nem o último episódio salva a história arrastada.
Tal como já dissemos, o argumento de Santo cumprido ao formato de um filme de duas horas traduzir-se-ia numa melhor experiência e ajudava a que o enredo se salvaguardasse de algumas das suas incoerências. Porém, uma vez que a escolha foi pelo formato de série, o que temos aqui é algo bastante estereotipado, com um bom punhado de clichês e que nem soube aproveitar os bons exemplos de histórias do género que já existem.
Com um gancho para uma renovação no capítulo final, Santo não consegue convencer-nos a comprar bilhete de novo, e talvez nem nos convença a dar o beneficio da dúvida de espreitarmos o primeiro capitulo da segunda season na esperança de que os problemas tenham sido corrigidos.
É um desperdício de proposta e de um elenco esforçado, perante uma falta de estratégia que deixa o gosto de uma fan fic daquelas que se leem nos fóruns, e mesmo nesses talvez já tenhamos lido algumas melhores.
Santo não conquistou e no fundo quem perde são as nossas expectativas que se deixaram enganar pelo material promocional. Esperemos que não faça escola e que não voltemos a ser levados a cair no mesmo erro. Torcemos por isso, Netflix.
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