Contos Bastardos • "Uma carta de amor pouco convencional - ridícula, como todas"
Uma carta de amor pouco convencional - ridícula, como todas
Um par como nós só podia ter vindo ao mundo ao mesmo tempo.
Unha com carne, falanginha com falangeta, pulso com antebraço, rádio com cúbito - sinto-nos como uma união indivisível.
Temos a mesma idade mas só reparei na tua existência aos cinco meses. Foi quando deixaste de ser um vulto, como tudo o que via - menos o polvo colorido que a minha mãe agitava à minha frente sempre que ameaçava irromper no choro. Descobri-te, feito palerma - e afinal tinhas estado sempre ali, careca de saber que eu existia, a passar-me os brinquedos que estavam ao nosso alcance. Ensinaste-me a contar, primeiro números e depois histórias, primeiro pelos dedos e depois pelos papéis e canetas.
És apaziguadora, carinhosa, amiga e fiel - mas também sabes levar meio mundo à frente. (Lembras-te de quando tínhamos aulas de guitarra? Tremias tanto na minha estreia em palco, mais nervosa por mim do que eu mesmo… E quando deste um murro na cara do rufia que me tentou levar a carteira no metro?)
Ao longo dos anos foste ficando marcada pelo tempo, esse ditador impiedoso que escava peles e cria vincos e sulcos à memória de caminhos dobrados.
Se nos apartam larga-me a inspiração, foge-me o engenho, desaparece-me a delicadeza, evade-se-me o propósito, furtam-me a impressão digital.
Quanto me falhaste tentei preencher o vazio com outra, mas dei por mim atrapalhado e cheio de saudades, sem me poder expressar - como um bailarino de dois pés direitos, trapalhão, impotente, amputado.
Conheço-me pior a mim do que à tua palma.
Nunca foste de acessórios, dizes que te pesam e aborrecem - mas tenho um pedido sério: conheci uma miúda e quero enfeitar-te o anelar.
Sei que não gostas destas piadas sobre lados dominantes, mas estou no meu direito.
Do teu adorado canhoto,
Para a minha eterna musa mão esquerda
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