Caçar com Gato • Crónica 3 - "Alfarrabistas, ou “Guardiões de Gestos e Intenções”
Alfarrabistas, ou “Guardiões de Gestos e Intenções"
de Luís G. Rodrigues
Entrar numa livraria é capaz de ser uma das sensações mais reconfortantes de sempre: o cheiro a papel, a companhia de outros leitores, a companhia dos livros. Porém, ao mesmo tempo, se se pensar na coisa de uma forma mais existencialista, uma livraria pode ser um autêntico labirinto, um caminho sem fim. O Almada Negreiros pensou assim quando se pôs a contar os livros da livraria em que entrou no “A Invenção do Dia Claro”. Contou quantos livros havia e quantos anos tinha para viver – chegou à conclusão de que o tempo não seria grande parceiro.
Mas se teve este tempo todo para pensar neste tipo de coisas é porque, certamente, não foi a um alfarrabista; deve ter ido a uma daquelas livrarias impessoais onde as pessoas que lá trabalham só ajudam quando são chamadas para isso. Se tivesse ido a um alfarrabista, para além de ser ajudado sem pedir – ou seja, o melhor tipo de ajuda – ainda ganhava um amigo que o tranquilizaria. Não propriamente por lhe dizer “tem calma, se não der para ler todos logo se vê, o que importa é ir lendo e vivendo como se pode”, mas porque nem lhe daria tempo para a matemática. A simpatia destes livreiros é o melhor antídoto contra o abismo.
Ao contrário do que acontece nas grandes livrarias comerciais onde se encontram todas as novidades e a última oferta do mercado, nos alfarrabistas vivem aquelas edições que, por vezes, já nem circulam há anos. Encontram-se livros mais raros, de autores mais antigos com ainda bastante por ensinar. Para além disso, é nestes espaços que habitam os livros menos comerciais, menos vendidos – o que não quer dizer que não sejam excelentes. Acontece apenas que, por vezes, há temas mais difíceis de vender, infelizmente. Acho que é fácil entender o porquê de “Juntos ao Luar”, de Nicholas Sparks, render mais dinheiro do que “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado”, de Friedrich Engels. O amor vende mais livros do que a política.
Mas está tudo bem. Os alfarrabistas dão tanto valor a um best-seller, como a um muito-pouco-seller. Não discriminam, são uns progressistas de primeira água estes homens e mulheres.
Acontece que estes muito-pouco-sellers vêm, normalmente, acompanhados. Sim, não vêm sós, com suas páginas brancas e palavras pretas. Vêm com umas palavritas escritas a caneta: dedicatórias, lembranças, registos de posse.
Cá em casa, tenho alguns achados giros que encontrei por aí em alfarrabistas.
Numa
edição de “O Processo”, de Kafka, está inscrita a seguinte dedicatória:
“23-04-00. Um beijo da Tia Laurinha.” A tia Laurinha, com o seu bom
gosto, decidiu oferecer a seu sobrinho ou sobrinha um livro de Kafka.
Talvez o seu primeiro. As páginas estão intactas, nem um sublinhado têm
ou uma dobra e a capa está ótima. Daí tê-lo comprado. Mas é pena. É pena
porque provavelmente o sobrinho não leu o livro da sua Tia Laurinha,
que com tanto gosto lhe endereçou um beijinho. Espero estar errado.
Outro
dos achados que aqui tenho é uma edição do “Gaia Ciência”, de
Nietzsche. Este livro vem acompanhado por um carimbo do “Jorge Martins
Ferreira – Consultor de Seguros – 2900 Setúbal.”
Quem diria, à partida, que um consultor de seguros anda com Nietzsche na estante? Ah pois. E não só o tinha, como fez questão de o marcar para sempre.
O último exemplo que trago é histórico – está na edição de Outubro de ´74 que aqui tenho do “Portugal Amordaçado”, de Mário Soares, livro escrito em tempos de deportação e exílio de um dos fundadores da democracia portuguesa. Este livro vem, simplesmente, com as seguintes palavras: “1974. Finalmente”.
O quão bem deve ter sabido escrever aquele “finalmente”. “Finalmente” esse que perdurará. Continua aqui, no livro. E continua nos nossos dias.
O alfarrabista que me vendeu este
livro não guardou apenas o livro. Preservou as intenções que aquele
livro carregou quando foi, pela primeira vez, oferecido. No fundo,
guardou um gesto. Talvez os livros sejam mesmo isso: gestos para mudar o
mundo. Levar o mundo a vários “finalmentes”.
Texto: Luís G. Rodrigues
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