Viajar Porque Sim | A Galiza é Já Ali
Apesar de ter uma costela familiar do sul de Espanha, a minha primeira incursão no país vizinho, era eu miúda, foi por terras galegas. E embora só tenha vagas memórias dessa viagem, sei que gostei da experiência – que, a bem da verdade, também serviu para despertar o bichinho das viagens que até hoje se alimenta de mim.
Além de ser uma região fascinante
e muito variada, a Galiza fica “já ali”, é ideal para um fim-de-semana
comprido, e tem muitos (e bons) segredos para descobrir. Neste roteiro vou
revelar-vos alguns.
Dia 1
Verín ® Castelo de Monterrei ® Allariz
Verín não é uma vila particularmente bonita, mas tem um centro histórico interessante quanto baste, com ruas pedonais ladeadas de casas de pedra e onde ainda sobrevivem algumas belas casas apalaçadas. A Praça García Barbón é o centro nevrálgico deste bairro antigo, onde se destaca a Casa dos Acevedo, local onde consta que ocorreu, em 1506, um encontro histórico entre Filipe I de Castela, o Belo, e o Cardeal Cisneros, para resolverem divergências entre o rei e o seu sogro, D. Fernando II de Aragão. Se seguirmos pela Rua Maior, encontramos a igreja barroca de Santa Maria Maior, que data de inícios do século XVII.
A mais intimista e elegante Praça da Mercede é outro ponto incontornável deste passeio por Verín. É aqui que está a igreja que tem o mesmo nome e o Convento dos Mercedários, do século XVIII, que funciona como colégio particular.
Indo para norte, passamos pela rua do Poço – onde existe, de facto, um poço antigo – e no início da rua Viriato damos de caras com uma escultura algo “estranha”: é o Cigarrón, um dos símbolos da cidade e personagem destacada naquela que é a maior festa da região, o Carnaval – ou, como se diz por aqueles lados, o Entroido. As origens do Cigarrón são ancestrais e indistintas, e o seu traje e os chocalhos que leva à cintura evocam os nossos Pauliteiros de Miranda e os Caretos de Podence, o que não é de estranhar tendo em conta a proximidade geográfica. Neste que é um dos carnavais mais antigos e invulgares de Espanha (declarado Festa de Interesse Turístico Nacional), a animação prolonga-se por semanas e inclui actividades variadas, desfiles, chicotadas (sim, chicotadas!), farinha, e muita música, comida e bebida.
Falando de gastronomia, aqui o polvo é rei, e o melhor sítio para o provar é a Casa do Pulpo, na Avenida Portugal. Além disso, toda esta região é famosa pela produção vinícola, em especial pelo vinho com a Denominação de Origem Monterrei. Há mais de 25 adegas incluídas nesta D.O. que podem ser visitadas, e em Agosto celebra-se na cidade a Feira do Vinho.
Monterrei é o nome do castelo e
conjunto monumental que fica a apenas dois quilómetros de Verín. Construído no
século XII sobre um antigo castro e rodeado de uma muralha tripla, tem como
maior curiosidade (para nós, portugueses) o facto de ter sido mandado edificar
por D. Afonso Henriques. Com a assinatura do tratado de Tui em 1137, em que o
nosso rei abdicou de quaisquer pretensões em relação ao território da Galiza,
passou para a posse do rei de Leão e Castela e foi desde essa altura um
baluarte estratégico de defesa da fronteira com Portugal. Outra nota curiosa é
o facto de ter sido aqui que se instalou a primeira prensa construída de acordo
com a invenção de Gutenberg, de onde saiu o primeiro livro impresso no país
segundo este método.
No interior do recinto amuralhado há vários edifícios erigidos em épocas diferentes. O Paço dos Condes, construção renascentista que tem anexa a Torre das Damas, é agora um Parador de Turismo. A Igreja de Santa Maria da Graça, de finais do século XIII, ostenta um estilo entre o românico e o gótico. Ao lado encontramos um pequeno edifício com uma fabulosa portada em arco ogival: é o antigo Hospital de Peregrinos, que se destinava a apoiar os caminhantes com destino a Santiago de Compostela.
Da Torre de Menagem do castelo
temos uma vista abrangente sobre Verín, os vinhedos onde se colhe a uva que dá
origem ao vinho da região, e toda a extensa paisagem circundante.
Chegamos finalmente a Allariz, que merece uma visita bem demorada, e o meu conselho é passar aqui a noite. Lugar de escala e repouso para os membros da realeza de Castela e Leão a partir do século XII, sendo mesmo chamada de “chave do Reino da Galiza”, desta importância resulta um extenso património arquitectónico cujo núcleo principal se manteve conservado até aos nossos dias, declarado em 1971 Conjunto Histórico Artístico pelo Ministério da Cultura espanhol e tão bem restaurado que recebeu em 1994 o Prémio Europeu para o Património Cultural Europa Nostra.
Do coração do centro histórico descemos até chegar ao rio Arnoia, que em Allariz toma o nome de Arnado. A área junto ao rio está lindamente recuperada e ajardinada mas mantém ao mesmo tempo vastas zonas de arvoredo, e o resultado desta mistura cria um ambiente agradabilíssimo e com um carácter singular. No local onde o curso do rio forma um cotovelo apertado há um enorme parque com árvores e relva, e aqui as margens são unidas pela ponte românica de Vilanova, em tempos a principal via de acesso à localidade mas da qual não se sabe ao certo se foi construída no séc. XII ou XIV. Menos dúvidas existem quanto à origem da igreja com o mesmo nome que lhe é contígua, datada de 1180 e que pertenceu à Ordem de São João de Jerusalém ou de Malta.
À igreja românica de Vilanova juntam-se as também românicas de Santiago, situada na Praza Maior, de Santo Estevo e de San Pedro, e a barroca de San Bieito, todas em pedra granítica e todas restauradas, pese embora algumas já tenham perdido várias das suas características de origem. Ainda assim, são todas bem diferentes umas das outras e cada uma tem os seus motivos de interesse.
Em tempos longínquos houve aqui um castelo, situado no alto do promontório de pedra a que chamam Penedo da Vela. Desaparecido totalmente em meados do séc. XIX, o local é o melhor miradouro sobre Allariz. A subida até lá não é difícil, e é absolutamente recompensada pela vista de quase volta completa que conseguimos ter sobre a vila.
Logo abaixo, o bairro do Socastelo (“sob o castelo”) foi a partir do séc. XIII uma judiaria. Nalgumas casas destas ruelas estreitas e sinuosas ainda existem as características duas portas no piso térreo (uma grande para o comércio, e uma mais pequena por onde se acedia ao espaço privado da casa) e as típicas varandas fechadas. À presença judaica em Allariz está associada a Festa do Boi, que tem início no sábado anterior ao dia de Corpo Santo e se prolonga até ao fim-de-semana seguinte. Durante estas festas, de manhã e à tarde, celebra-se a corrida do boi pelas ruas da vila. Duas ou três pessoas levam nas mãos a corda que está atada aos cornos do boi escolhido para a ocasião (que vai variando de corrida para corrida), enquanto outras velam pela segurança do animal e dos “corredores” de fogem à frente do bicho. É também organizada uma Procissão Medieval, que termina em grande festa, além de outros eventos para todos os gostos. Perto da igreja de San Pedro, uma escultura modernista da autoria de Arturo Andrade celebra aquela que é a festa tradicional mais antiga da vila.
A região de Allariz faz parte da Rede Mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO. Possui vários tipos de paisagem e habitats, dando origem a uma grande diversidade de fauna e flora, além de existir uma utilização sustentável dos recursos e uma permanência de valores culturais com práticas tradicionais que favorecem a preservação do ambiente. A somar ao Parque Etnográfico que se situa à beira do rio, fora da vila existem junto ao curso do Arnoia várias áreas de lazer e passeio – como por exemplo a praia fluvial de Acearrica e o Centro de Educação Ambiental do Rexo – que são excelentes pretextos para belos passeios e para conhecer melhor aquele que é um dos rios mais bonitos da Galiza.
É na margem oeste do Arnoia que se situa o recinto do Festival Internacional de Xardíns de Allariz, ocupando uma área de 40 mil metros quadrados paralela ao rio. Tal como o seu congénere Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima (de que falei no artigo anterior, “Jardins e Arroz de Sarrabulho”), há sempre 10 jardins a concurso nesta exposição, a que se junta o jardim que venceu a edição anterior e um jardim extraconcurso criado, por tradição, pelos alunos da Escola Secundária da localidade. O tema dos jardins que vão estar em exibição até Outubro de 2022 é “Jardins terapêuticos, desenhos que curam”.
Dia 2
Allariz ® Augas Santas ® San Pedro da Mezquita ® Ourense
Allariz é também conhecida como
um óptimo lugar para compras, sobretudo devido às suas várias lojas outlet de
marcas espanholas de vestuário bastante conceituadas, entre outras dedicadas a
artigos diversos. Concentradas no centro histórico, sobretudo na Rúa Portelo e
na Rúa Fonteiriña, estão abertas durante todo o fim-de-semana (só encerram às
segundas-feiras) e têm um horário bastante alargado. Por isso, a manhã deste
segundo dia é a altura ideal para fazer um périplo pelas lojas da vila.
É igualmente uma boa ocasião para visitar pelo menos um dos vários museus abertos ao público, e aquele que aconselho que não percam é o Museu da Moda. Há também o Museu do Brinquedo, Museu de Arte Sacra de Santa Clara, a Casa-Museu Vicente Risco, o Museu do Coiro e o Moinho do Burato, estes dois últimos inseridos no Parque Etnográfico. Mas o Museu da Moda é particularmente curioso, sobretudo por não ser uma temática habitual, menos ainda numa localidade tão pequena, e é um excelente exemplo de como é possível criar um museu agradável, distractivo e muito interessante sem necessidade de recursos astronómicos.
De Allariz seguimos para Augas Santas, outro ponto importante para quem faz o Caminho de Santiago por Verín e Allariz. É uma aldeia pequena, também declarada Conjunto Histórico Artístico nos anos 60, com casas de granito conservadas com maior ou menor fidelidade à traça inicial, e que se agrupam em volta da Igreja-Santuário de Santa Mariña. Filha de um governador romano e decapitada em 139 d.C., a santa que é considerada a primeira mártir galega é objecto de grande devoção. Vários locais associados a antigos ritos pagãos deram origem a lendas construídas em volta desta figura popular na região, e formam uma rota arqueológica muito interessante, com vestígios que datam desde a Idade do Ferro. Estes lugares fazem parte do percurso da Procissão dos Pendões, que tem lugar no dia da Ascensão, e as festas anuais em honra da santa celebram-se a 18 de Julho.
A Igreja de Santa Mariña de Augas Santas, tal como hoje a vemos, data dos séculos XII-XIII e encerra no seu interior um mausoléu erguido sobre o que se supõe ser a tumba da santa. Construída em estilo românico a partir de um pequeno templo erigido em fins do século VIII ou inícios do século IX, quando foi descoberta a tumba, teve modificações posteriores tanto no seu interior como no exterior, de que são prova a torre do campanário, os pináculos e as cúpulas das torres laterais. É um monumento harmonioso e imponente, maio asfixiado pelas construções muito próximas que o rodeiam, pese embora minúsculas por comparação com a envergadura da igreja.
Deste complexo religioso fazem também parte um cemitério, vários cruzeiros, um adro e o Paço Episcopal, uma construção modesta que se destaca pelas escadas que levam à porta de entrada, guardadas por dois mamíferos de pedra com expressão feroz, e que agora desempenha as funções de casa paroquial.
A uma mera dezena de quilómetros de Augas Santas há uma outra bela igreja que vale a pena visitar: São Pedro de A Mezquita. Situada em espaço aberto sobre um plano ligeiramente elevado, pertenceu ao Mosteiro de Celanova e foi construída em inícios do século XIII, apesar de já estar referida em documentos que lhe são anteriores mais de 200 anos.
A fachada principal, bastante adornada, contrasta com a simplicidade aparente do resto do edifício. O portal tem três arquivoltas adornadas, apoiadas em colunas com motivos vegetais, todas diferentes umas das outras. Por cima da porta, um tímpano com o Agnus Dei. Sob a imposta há várias figuras antropomórficas e, em grande destaque, a figura de São Pedro, identificado pela chave que tem na mão, e uma figura feminina que se supõe ser uma representação da Virgem ou de Santa Ana. Na parte superior dos contrafortes que dividem a fachada também há um grupo interessante de figuras esculpidas na pedra: a loba que amamenta Rómulo e Remo, um dragão, um lobo que devora um cordeiro ou coelho, e um músico. Mais acima, abre-se a roseta típica do estilo românico.
Na fachada sul, mais ornamentada que a do lado oposto, há uma porta cujo tímpano parece suportar a tese da existência de uma anterior igreja visigótica. Nele estão representados dois leões rampantes simétricos com as patas dianteiras apoiadas num castelo, motivo que não se encaixa no tema habitual das igrejas românicas.
De A Mezquita só demoramos 15 minutos a chegar a Ourense. Capital de província e terceira maior cidade da Galiza, por ela passa o também nosso rio Minho, e é desde há séculos lugar de excelência pelas suas águas termais, que brotam à “agradável” temperatura de 67°C. Não é por isso de estranhar que por toda a cidade existam fontes e estações termais, algumas delas gratuitas, e que na margem direita do rio tenha sido criado o Passeio Termal, um percurso de quatro quilómetros entre o Campo da Feira e Outariz, que dá acesso a várias destas termas.
O primeiro destes espaços que se
encontra no Passeio Termal, muito perto da Ponte do Milénio, é a Chavasqueira,
um conjunto de pequenas piscinas de pedra ao ar livre no meio da vegetação
ribeirinha. Aqui podemos contar com água a cerca de 40° de temperatura. Mas as fontes de
água quente mais emblemáticas de Ourense são As Burgas, situadas no centro
histórico e intimamente ligadas à origem de Aquis Aurensis, a povoação romana
da qual nasceu a cidade actual. Os vestígios arqueológicos descobertos no local
indicam que este foi um centro de peregrinação na antiguidade e um dos
santuários mais importantes da Península Ibérica pelo menos desde o século I
d.C. Para nos contar a história do lugar foi criado um Centro Interpretativo,
dividido em cinco áreas e complementado com uma zona verde que funciona como
museu ao ar livre.
Dia 3
Ourense ® Parada de Sil
A Praza Maior é, como em qualquer cidade espanhola, o centro da vida social de Ourense, com esplanadas em toda a volta e os edifícios da Câmara Municipal e do Museu Arqueológico. Tem ainda uma particularidade algo fora do comum: é inclinada. Subindo por uma escadaria lateral damos de caras com a Igreja de Santa María Madre e depois entramos numa pequena praça deliciosa, a Plazuela de la Madalena. Atravessamos uma passagem estreita e estamos na Praza do Trigo, cujo nome vem do facto de ser aqui que em tempos idos se fazia o comércio dos cereais. Há edifícios com arcadas, e no centro ergue-se a Fonte Nova.
É nesta Praça o acesso à Catedral, que vista daqui não parece muito impressionante, com a sua fachada meio austera e pouco ornamentada, assim a modos que a fazer lembrar um castelo. Dedicada a São Martinho de Tours, foi construída entre os séculos XII e XIII, e elevada a basílica em 1887. No interior, o ambiente soturno mantém-se, com paredes de pedra nua, manchada pelo tempo, colunas e abóbadas simples, a luz exterior que entra em doses reduzidas pelas frestas estreitas, rasgadas quase junto ao tecto. O antigo claustro está actualmente ocupado pelo Museu Catedralesco, recheado de peças valiosíssimas de arte sacra. Depois subimos à Torre Sineira, um fantástico miradouro sobre a cidade e o melhor sítio para observar o magnífico zimbório tardo-gótico que é uma das jóias desta catedral.
Quando começamos a visitar as capelas, a impressão de sobriedade desaparece. Na Capela Maior, o retábulo do século XVI é uma orgia de pormenores. A da Assunção é uma festa de cores, com um original tecto aos quadrados, e na do Santo Cristo é tanta a quantidade de ouro que forra paredes e tectos, e tão trabalhado, que não há como não abrir a boca de espanto. Mas o sítio que mais me encantou dentro deste monumento foi o Pórtico do Paraíso: três arcos, cada um com várias colunas agrupadas, sobre cada coluna a reprodução polícroma de uma personagem religiosa, e acima delas outras imagens esculpidas. A este conjunto mesmerizante de cores fortes juntam-se a escultura que representa o apóstolo Santiago, a abóbada estrelada, os altares laterais barrocos e as pinturas murais com imagens extra-large de São Cristóvão e Santo Ildefonso, também elas bem coloridas. O pórtico é do século XIII e as imagens têm um ar deliciosamente naif, que condiz bem com as cores exuberantes do conjunto.
Ao contornar a Catedral é que nos apercebemos de como ela é realmente volumosa, sobretudo quando chegamos por fim à Praza de Santa Eufemia – que parece mais uma rua larga do que propriamente uma praça. A igreja que lhe dá o nome tem uma fachada barroca côncava belíssima e muito original, com colunas e elementos decorativos pouco vulgares. Ao lado, vale a pena espreitar o interior do Paço Oca-Valladares, onde está alojada a sede do Liceo de Ourense, uma sociedade cultural fundada em 1850.
Embora Ourense tenha muito para ver, vale a pena aproveitar uma parte deste dia para fazer um curto de desvio de 40 km e ir conhecer outro dos lugares mais bonitos desta região galega: o desfiladeiro do Sil. No seu troço final, este rio corre aos esses e às voltinhas por entre paredes graníticas abruptas, tão altas que por vezes se erguem quase 500 metros acima das águas. É uma paisagem soberba, e um dos locais onde melhor podemos apreciá-la é no Miradoiro dos Torgás, mais conhecido por Balcones de Madrid, que fica a uma curta distância de Parada de Sil. O vale do Sil separa as províncias de Ourense e Lugo, e aqui as suas águas são tranquilas, represadas mais a oeste pela Barragem de Santo Estevo antes de se juntarem ao rio Minho. Toda esta zona, que acompanha parte dos percursos do Sil e do Minho, é conhecida como Ribeira Sacra, e nela encontramos um património cultural e paisagístico invejável que merece por si só uma visita bem demorada. Mas por agora, será satisfação suficiente terminar este roteiro num lugar tão cheio de beleza natural.
Bons passeios!
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