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COMING UP | Don’t Look Up

Crítico, insano, mordaz. Don’t Look Up é um exemplo sobre como a estupidez humana pode causar o apocalipse numa proporção bíblica. A nova longa-metragem de Adam McKay traz a linguagem metafórica e moralista do realizador que já vimos noutros sucessos anteriores mas desta vez com uma proposta que se encaixa no mainstream enquanto nos apresenta personagens que têm tanto de estereotipados quanto de ricos. 

É a Netflix a beijar de novo uma longa lista de indicações ao Oscar com um filme que apesar da sua mensagem impactante tende a cair no esquecimento. Controverso e paradoxal, Don’t Look Up corre o risco de se tornar numa obra incompreendida mas com a vantagem de ter um tema que nos apetece revistar uma e outra vez de tempos em tempos. Falamos disto e de muito mais na primeira edição do ano do Coming Up que inaugura a habitual época de premiações. 

Don’t Look Up é mais um daqueles projetos que junta o melhor de dois mundos: Um realizador conceituado com uma linguagem altamente característica e um orçamento invejável. É uma formula que tem gerado alguns dos maiores sucessos do cinema nos últimos anos, mas toda essa expectativa talvez fique à quem do esperado. 

Este é daqueles filmes sobre os quais é difícil termos uma análise linear, a complexidade do argumento assim o exige. O tema apocalíptico intergalático leva-nos para um lugar de longa-metragem de ação interessante mas sem a ação a servir de timoneiro. 


Pelo contrário, aqui temos um ponto de vista mais dramático embora bem humorado, que se torna no grande twist deste projeto que transforma um tema já muito trabalhado pelos filmes de blockbusters e o casa com um drama profundo que serve introspeção sobre o que é dimensão humana e até onde os chamados pecados capitais são capazes de nos levar. 


Vamos começar pelos pontos altos de Don’t Look Up para falar sobre as personagens. O argumento começa por nos entregar uma estrutura dramática clássica com personagens a lutarem por ter uma voz e até com laivos de um dramatizamos maior, mas à medida que nos vamos envolvendo nessa linguagem romanceada, o texto está apenas a dar balanço para depois se entregar à loucura e usar essa base que construiu para mostrar que no fundo todos eles encaixam em estereótipos quando expostos às luzes dos holofotes. 


Quando passam essa travessia por serem ouvidos e realmente lhes é dada a credibilidade, o argumento esforça-se por dar veracidade ao ditado que diz que se queres saber qual a verdadeira cara de uma pessoa tens de lhe colocar poder nas mãos. 


E é divertido, ao mesmo tempo que nos leva numa autoanálise, perceber que toda a jornada pseudo heróica de Randall Mindy se desmorona num estalar de dedos. Que as suas convicções são traídas, que a sua aparente pacatez e bondade são postas no chinelo e a vida dele acaba por ser a materialização de mais um ditado popular: Quanto mais alto sobes maior é a queda. 


E a lista de personagens que encaixam em gavetas continuam a surgir no desenrolar da história, mas aqui com um grande segredo: Na mesma medida em que nos introduz aos estereótipos, o filme vai enriquecendo cada personalidade com os inputs necessários para os fazer brilhar, com um moral que não segue pelo caminho do barato, e torna o oco em algo altamente viciante. 


É alquimia pura o que o texto de Don’t Look Up faz, uma personagem aparentemente tão básica como a da Presidente Orlean vai ganhando novas dimensões a cada aparição, sabemos que o seu alicerce é a corrupção política, é a sua bandeira neste filme, mas a forma como faz isso é diferente porque a vemos totalmente desprovida de sensibilidade para com o outro, submissa ao poder e à dimensão financeira que a rodeia sem que isso implique uma postura rude ou de mulher implacável. 


Se este é o melhor papel da carreira de Meryl Streep? Não é, e dificilmente teria condições para o ser, mas não envergonha em nada o seu talento e há uma conjugação perfeita entre atriz e personagem, porque ter Meryl como corpo desta Presidente dá-lhe uma força e presença que dificilmente seriam conseguidas por outra atriz. 


Mesmo que todas as camadas da personagem sejam viradas para características negativas, a forma como Meryl puxa a sua própria empatia para cada cena faz com que todo o afeto dos eleitores por ela se torne credível, e que dê uma certa verdade dentro da tempestade de loucura que Don’t Look Up carrega.


No mesmo sentido do que acontece com Meryl Streep, Cate Blanchett dá o melhor de si para entregar uma figura afável ao olhar do povo, expressando na perfeição as dimensões pública e privada da sua Brie. Além de se tornar num espetáculo de talento, a personagem apresenta uma leitura interessante dos mitos que se constroem sobre a perfeição de quem nos entra todos os dias pela televisão na nossa casa. 


Temos uma noção de que cada figura é quase dotada de um poder transcendente, algo sobre-humano que faz da maioria dessas pessoas seres que estão acima dos comuns mortais, aqui o argumento escangalha essa ideia por completo apresentando uma versão guionada do que é a figura pública enquanto no verso é alguém ainda mais execrável que a maioria das pessoas que andam à nossa volta. 


Seguindo a lista de figuras peculiares que Don’t Look Up nos apresenta, Mark Rylance é uma representação rebuscada da magnitude que os altos poderes conseguem atingir. O poder é uma arma perigosa e quando casado com a ambição o resultado expectável é o que vemos aqui transposto numa atuação digna de nota daquele que é dos talentos que mais tem surpreendido nos seus projetos. Mas Rylance não tem o mesmo tempo de ecrã que os seus comparsas mas nem por isso deixa de cativar e pode, sem grande esforço, conquistar indicações às premiações. 



Mas à parte disso, onde está o lado menos bom de Don’t Look Up? Ora, por mais que a mensagem moral esteja no ponto e que seja uma agradável surpresa pela sua ousadia, este não é o tipo de filme que nos fique gravado na memória. 


Há muitos espetáculos de representação, há muitas ideias que são, sem sombra de dúvida, brilhantes, mas no seu todo acaba por pecar por alguma falta de impacto, por algum momento que nos marque e que nos faça associar de imediato com esta história e que nos leve a visitá-lo novamente. 


A sensação que nos deixa é que este é um excelente filme e uma daquelas obras que é uma maravilha para quem adora leituras sociológicas, mas falta-lhe garra em alguns pontos. 


A cruzada de Randall é bastante interessante, tem até a questão de se desconstruir ao longo do filme, mas acaba por ficar ali num limbo dúbio numa atuação que sobrevive muito do carisma de Leonardo DiCaprio e para a qual não parece ter existido um grande esforço da parte do ator. Já o vimos tão melhor que mesmo que ele esteja bem e que ofereça realismo à sua personagem sentimos falta do magnetismo que enche a tela e nos faça render-nos ao seu talento como já fez em vários filmes. Desculpa, Leonardo, este Oscar não será teu. 


Jennifer Lawrence também não brilha tanto quanto podia. É certo que Kate é uma personagem muito mais linear e menos louca que todas as outras, mas dentro dessa linearidade há momentos em que a atriz exagera e soa quase a algo forçado sobretudo quando a vemos rodeada de atores que vestem a pele de figuras muito mais espalhafatosas e que mesmo assim conseguem convencer-nos e não nos desvirtuam do lado mais realista da longa-metragem, como Jonah Hill. 


Este último é um dos grande front-runners às premiações numa atuação que merece aplausos por mais uma vez mostrar o quão multifacetado ele é e a sua elasticidade artística que o leva do drama à comédia em segundos.


No fundo, por mais que Don’t Look Up tenha todos os ingredientes para se tornar num filme de culto parece que fica a meio do caminho, num uso excelente do recurso ao exagero que não foi compreendido por todos os atores, mas que peca pela ausência de um clímax que o torne num favorito para as corridas às estatuetas. 


Tem o lado moral e social que é um prato cheio para discussões sobre a dimensão do poder e como o ser humano reage quando este lhe é dado, mas fica-se por aí. Além disso ainda tem contra si o facto do exagero nem sempre ser compreendido por todos os tipos de público, o que até é aceitável, mas não conjuga com a base mainstream que o projeto apresenta. 


Torna-se muito complicado analisarmos um filme quando a nossa leitura sobre ele é que em certos momentos é muito bom, noutros nem tanto, depois volta a ser e a seguir já nos nos convence. E tudo isto sem podermos acusá-lo de inconsistência, porque ela existe no argumento e nessa aproximação ao género de fábula. 


Em resumo, Don’t Look Up parece um agrupar de boas ideias que nem sempre acerta e que em alguns momentos transmite uma visão psicadélica de uma parábola bíblica. 


Estranho, mas uma ótima experiência cinematográfica que dialoga muito bem com o caminho da Netflix em trazer para o seu catálogo projetos de culto. Não estamos rendidos, mas é já um dos projetos com lugar cativo entre os indicados aos Oscars e com chances de levar prémios, pelo menos no que a realização diz respeito.