COMING UP | Eternals
Chloe Zhao e Marvel na mesma produção talvez não seja a escolha mais óbvia, mas a verdade é que funciona. Com o estúdio a beber da inspiração contemplativa da realizadora, o MCU viaja por questionamentos mais profundos, com ainda mais conteúdo numa longa-metragem que é desenhada numa proporção épica. Eternals é uma história bem escrita, numa transição que marca muito uma passagem no testamento da Marvel recheada de personagens interessantes, com os quais nos conseguimos relacionar facilmente e sobre os quais te contamos tudo em mais uma edição do Coming Up. Fica connosco e descobre tudo sobre este novo passo na Bíblia da Marvel nos cinemas.
Eternals marca mais um ponto no trilho que a Marvel tem vindo a percorrer de transformar o conceito mainstream em algo que nos deixa com algo mais, que acrescenta à nossa experiência e não se limite às barreiras do que é comercialmente aclamado.
O terceiro projeto cinematográfico da Phase 4 traz-nos um entendimento sobre as origens do universo criando fundações que mudam a forma como olhamos para tudo o que se passa dentro deste universo tão rico. Mas enquanto se preocupa em explorar e acrescentar à visão sci-fi, Eternals carrega o peso filosófico da mente de Chloe Zhao com discussões sobre crença, religião e um amor familiar que foge aos padrões lineares que tínhamos visto até então nos projetos com o selo da Marvel Studios.
O MCU tem feito um percurso bonito e indiscutível na construção e desenvolvimento de personagens, além de lhes dar mais conteúdo e de os transformar, cada vez mais, em seres redondos, desfazendo a velha estética plástica dos heróis perfeitos e dando-lhes camadas e conflitos que realmente estimulam o público e nos fazem pensar. Porém apesar dessa background já nos ser familiar, a Marvel não tinha ido tão longe como em Eternals, em que cada figura é, realmente, diferente e com um sentido de proximidade e representatividade que se torna fascinante e que demonstra bastante respeito pelo público.
Temos heróis de diferentes etnias, com deficiência, com orientações sexuais diferentes, com muita voz é que refletem bem a pluralidade do público que é fã da Marvel. O mundo nerd é muitas das vezes rejeitado pela diferença e durante anos nos cinemas e nas séries existiu um combate a esse estigma que trouxe atores estereotipados para papéis de destaque, uma tendência que a Marvel está, claramente, empenhada em reverter num exemplo bonito que dá a cada pessoa do seu público o sonho de poder ser um herói.
É um combate à discriminação e respeito ao próximo que pode ter mais efeitos do que aquilo que imaginamos. Aliás, para quem teve a experiência de ver o filme numa sala de cinema sabe que há algumas cenas que despertam risos e gozos, que no fundo são uma prova viva do quão importante é trazer este senso de representação à tona. Há um longo caminho a trilhar, mesmo dentro da Marvel, mas é um passo que inegavelmente melhora muito a experiência de assistir a Eternals.
O argumento constrói um paralelo interessante sobre até onde as pessoas estão dispostas a ir por aquilo em que acreditam. Por mais que aqui não trabalhem como “religiões” reais, o conceito está lá e é colocado com uma atenção que não nos deixa indiferentes e que deixa bem percetível (por vezes até demais) que o que está ali é um espelho do que acontece fora deste sci-fi.
Essa inspiração é aproveitada na perfeição para mostrar a profundidade e os conflitos das personagens, utilizando o conteúdo mais sobrenatural ou fantástico para mostrar as loucuras que se fazem em busca daquilo que acreditam ser a convicção mais acertado, independentemente do que isso possa causar em quem não partilha o mesmo pensamento. E é aqui, neste ponto, que os personagens sobem para outra dimensão com dúvidas muito mais existencialistas que as que estamos habituados nos membros dos Avengers e que obrigam a que o público pense. É, também, este detalhe que entrega aos personagens dualidades que os humanizam, nenhum deles única e exclusivamente bom ou mau, não estão padronizados, e por mais que a nossa visão romântica nos leve a torcer por uma das fações conseguimos, de igual modo, ficar apreensivos sobre o destino de quem defende a visão contrária.
Esta dicotomia de sentimentos torna Ikaris numa das melhores personagens do filme, como anti-herói, o Superman da Marvel é uma representação fiel sobre a ausência de limites de quem segue as crenças ao extremo. Ao mesmo tempo, o personagem de Richard Madden entrega uma leitura de uma família disfuncional, reforçando que as aparências não são um retrato das verdadeiras intenções de cada pessoa.
No fundo, Ikaris é a representação das clivagens e da humanização dos personagens, tornando-o, tal como acontece com Wen Wu em Shang-Chi, num anti-herói com justificações altamente plausíveis para as suas decisões, e é bonito ver a Marvel alargar o espectro e trazer para os ecrãs uma profundidade que já existe nas Bandas Desenhadas mas que até recentemente não era transportada para o MCU.
Uma linguagem e construção de figuras que se alarga a todos os outros personagens que além da representatividade que trazem para o ecrã têm personalidades que despertam a empatia de públicos que estão, na sua maioria, fora do habitual mainstream.
Existem conversas muito interessantes no centro de Eternals, que falam, por exemplo, de saúde mental. Angelina Jolie brilha neste tema, com a riqueza de Thena a ser um dos melhores marketings da longa-metragem. Dentro de um contexto sobrenatural, a personagem explora os problemas mentais, a depressão, a ausência de uma justificação para o mal estar, levando Thena a sucessivas situações limite que a colocam em pânico. Aqui há um ponto louvável, por colocar este debate em cima de uma figura que é forte, de alguém que é dona de um dos maiores poderes dentro deste grupo e que não tem uma postura frágil até se ver confrontada com esta questão de saúde.
Mas não é só em Thena que reside esta vontade do filme sair de dentro da caixa. Sprite também se debate com um amor imbatível, uma paixão familiar que a leva a colocar em cheque tudo o que acredita apenas para seguir, cegamente, as convicções daquele que sempre teve como um exemplo. É uma linguagem diferente mas que casa muito bem com algumas narrativas criminais de sucessos como Truth Be Told, em que o amor serve de toldo e elemento de compreensão até para as maiores atrocidades.
Seguimos com Druig que mesmo dentro do seu complexo de Deus, tem uma das linhas mais interessantes dentro da história de Eternals. Ele não se encaixa nos padrões da equipa, por não ter uma mãe amável que o tente compreender e olhar com maior atenção para as suas questões. Makkari é a única que entende o quão ostracizado o seu parceiro é, numa ligação afetiva que mostra a união de forças de quem é obrigado a lidar com o julgamento alheio apenas por ser diferente.
Se bem que, Eternals tem uma abordagem interessante com Makkari, não tornando a sua deficiência em algo que a torne mais fraca, nem do ponto de vista do público nem dentro da própria equipa. Já é um passo importante na forma como o cinema aborda as limitações físicas e que tem sido uma mensagem constante nos projetos recentes da Disney, com Luca, por exemplo.
Contudo apesar da longa lista de elogios que podemos fazer ao filme, Eternals tem alguns problemas. Enquanto na escrita e desenvolvimento tudo se eleva e torna o projeto em algo épico, a parte técnica não convence e acaba por baixar um pouco a nossa experiência.
Chloe Zhao traz a sua melhor faceta para Eternals substituindo o habitual CGI por cenários naturais, bonitos, e uma imagem limpa e clara. Mas é quando os elementos computadorizados entram em cena que tudo se complica, pois parece que são realidades tão distantes que acabam por não casar em cena. Nas cenas de luta ou de maior acção não é algo que se note tanto, mas nas restantes a introdução de Deviants em cenários tão naturais deixa muito a desejar e fica bem a baixo do nível de cuidado que a Marvel nos apresentou até então.
Mas não é só. Por mais que o guião seja rico e bem escrito, as constantes transições entre vários períodos históricos também não convencem e acabam por gerar alguma confusão em alguns segmentos. Não é algo tão gritante como em The Wicther, por exemplo, mas é um ponto que incomoda, sobretudo por não termos uma transição ou corte cuidado. O tratamento dado à imagem é, na larga maioria, muito diferente entre cenas e desvirtua o trabalho que foi feito anteriormente.
A Marvel é conhecida pelo seu cuidado extremado com todo e qualquer detalhe, mas em Eternals os detalhes quase se transformam nos maiores erros.
Ainda na maré dos detalhes, apesar da ótima banda sonora do filme, há um momento chave em que a música se torna numa falha gritante. Quando Phastos beija o marido antes de deitar o filho, surge uma música romântica/melancólica completamente fora de tempo e que desperta no público menos inclusivo risos desnecessários que talvez nem acontecessem se aquela música não aparece-se ali e tivesse começado apenas uns minutos depois.
É triste porque nota-se o trabalho para normalizar o momento, mas tudo é destruído por uma falha técnica completamente despropositada. Com tudo o que o filme representa e nos oferece não há espaço para piadas que se mantenham no limbo, é um pormenor infeliz.
Na análise geral Eternals ultrapassa em larga escala Black Widow enquanto fica um pouco a baixo do patamar Shang-Chi, muito por culpa dos erros técnicos, porque no fundo a história funciona e está pejada de mensagens marcantes que nos fazem sair da sala e ficar a pensar nelas.
É memorável e tem tanto de épico de ação quanto de contemplativo fazendo o melhor uso possível do talento de Chloe Zhao e mostrando que as escolhas improváveis funcionam bastante bem. A arte é um conceito abrangente e Eternals é uma daquelas obras que a tempo vai acabar por valorizar e dar-lhe um impacto de culto interessante.
À parte disso, a história de amor romântica é um retrocesso em relação ao esquema que a Marvel tem seguido, mas foi um caminho bastante seguro para um projeto que já vinha carregado de muitos temas importantes nos núcleos secundários. Faltou-lhe uma comunicação maior com o MCU e uma justificação que realmente convença para a ausência dos Eternals em grandes conflitos, porque convenhamos que aquilo que Sersi diz a Dane é uma explicação de conveniência que serve apenas para calar as vozes criticas mas que foi pensada em cima do joelho e que podia, e até se exigia, que fosse mais trabalhada.
Mesmo assim, os personagens desta nova equipa são tão ricos que nos dão vontade de saber mais deles, de os ter em mais momentos, até mesmo porque o humor da Marvel precisa de beber um pouco da inteligência destes novos heróis.
As cenas pós-créditos deixam-nos num bom hype, com um Eros gozão que poderia formar uma dupla interessante com Thor e Peter Quill. Será isso que vamos ver? E já agora, de repente não faltam artefactos na Marvel, depois dos Dez Anéis temos agora a espada do Cavaleiro Negro, o que terá Wong, Hulk e Carol Denver a dizer sobre isso? A resposta virá, muito provavelmente, numa das próximas séries do Disney+ e nós mal podemos esperar para saber tudo! Fiquem connosco que nós ficamos com a Marvel.
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