COMING UP | Na Porta ao Lado - Amor
De uma importância e atualidade indiscutíveis, num puro ato de serviço público, Na Porta ao Lado - Amor é um trabalho exímio de ponta a ponta que precisa de ser visto e revisto, num texto que trabalha a escalada da violência com um foco no olhar público que existe sobre o agressor ao ponto de levar quem ouve a duvidar do que está a acontecer e a confundir os papéis de quem é a vítima nesta história. Com a pandemia a servir de fio condutor a uma narrativa escrita com um cuidado e um realismo que servem o propósito dramático mas que acima de tudo servem a proposta de transformar a ficção num alerta, este segundo volume é uma das pérolas do catálogo da OPTO SIC e nós dizemos-te porquê nesta edição do Coming Up. Fica connosco, e fica atento à tua volta porque há alguém que pode estar a precisar que sejas a sua Inês.
O grande ganho deste Na Porta ao Lado - Amor passa pelos alicerces que tem, utilizando a suposta imagem de uma família perfeita, com posses, com dinheiro, e tudo o resto, mas que a azáfama do dia a dia os tornou em parceiros temporários, quase como se conhecessem uma primeira camada do outro mas não a real essência. E é por isso que tudo se torna ainda mais realista e importante, porque por mais que seja uma obra de ficção que está a ser contada desta forma para criar impacto, se falarmos com outras tantas pessoas, o que temos ali é um relato fiel da realidade.
A pandemia foi a causadora de muitas separações, porque permitiu às pessoas conhecer o outro, de ver o parceiro como antes nunca tinha visto. O cansaço, a mudança constante de regras que toldam a nossa liberdade, o desespero e medo, ajudam a todos os defeitos saltem ao de cima, como se tudo começasse a desmoronar e até o gesto mais simples que acontece todos os dias se torna em algo que mexe connosco e nos leva ao nosso limite.
A questão é que para alguém que já tem um instinto violento, essa concentração de energia explode da maneira mais dolorosa possível. E é, também, por tudo isso que a obsessão de Jorge flui tão rápido na história, pode parecer que está tudo acelerado, mas na verdade, para quem já passou por alguma situação deste género, sabe que a escalada é tão veloz quanto o filme nos apresenta, que os sentimentos explodem de uma forma incontrolável e que é como se aquela pessoa que conhecemos uma vida inteira fosse um perfeito estranho que cega e sucumbe à violência e daí vem o medo, o pânico de que não fique por estalo, que não fique por um braço apertado e que de repente existam consequências maiores para o que se passa ali.
E o filme agarra todas estas referências de forma exímia nos dois protagonistas, quer no medo de Marta, que passa por um processo de autoculpabilização enquanto perde a vontade de mudar as coisas e que começa a mudar o seu medo do mal que o marido lhe possa fazer para os efeitos que isso pode ter no seu filho, até à forma como Jorge se vai transformando ao ponto de perder o seu charme público.
Porque sim, um agressor não tem simplesmente “cara” de agressor. Pode mesmo ser o vizinho mais simpático que se oferece para dar uma ajuda incrível, e construir esta imagem pública é crucial para despertar alarmes em todos nós ao ponto de estarmos com uma maior atenção ao outro.
Em todos os momentos que vemos o personagem em convívio com outros ele é o homem ideal, simpático, bom pai e afetuoso. Ao ponto de levar a vizinha Inês a questionar-se sobre o que de facto se passa e de não saber o que responder quando lhe perguntam se Marta é a agressora, porque de facto todas as memórias que ela tem de Jorge gritam que ele é um homem de bom carácter.
Um trabalho de diálogos absurdamente realista que ainda puxa para o enredo a pandemia e mostra como todos acham que já veem coisas onde não existem e que colocam um pé no travão com medo de se meter na vida alheia, mas o que é importante, é que ela atuou. E se não o tivesse feito, o desfecho desta história seria aquele que tantas vezes ouvimos nas crónicas de Hernâni Carvalho ou nas histórias do Jornal. E por isto que a mensagem do filme é tão importante e traz muito mais impacto do que o primeiro título da coletânea, porque é muito mais próxima de nós. Há Martas e Jorges em cada esquina, e o que esta história clama é que precisamos de mais Inês, que precisamos de atenção e que precisamos, sobretudo, de não julgam um livro pela capa.
Mas além de mostrar todo o processo de como o agressor vai perdendo a sua capacidade de autocontrole ao ponto de até com Inês já ter um comportamento que não preenche os padrões sociais que ele tem no arranque da história, o filme faz um trabalho perfeito para apresentar este homem como alguém que está formatado para responder com mão de ferro a tudo, algo que é notório logo no primeiro impacto que temos com ele em que critica de forma bem agressiva e até um pouco irracional o que está a ver na televisão mas que ganha outras proporções quando vemos os valores com os quais quer educar o seu filho, dizendo-lhe que deve reagir de igual modo com quem o agride, numa educação até um pouco arcaica e que deve ser erradicada.
Aliás, a forma como a narrativa avança indica exatamente como é personalidade deste homem, com um machismo desmedido que eleva o ciúme a proporções pouco saudáveis e que leva em consideração a brincadeira do filho para o apelidar de maricas, gritando e ofendendo a criança sem o mínimo de compaixão. Mas o que é verdadeiramente assustador é que este é um retrato absurdamente fiel sobre o mundo à nossa volta, que não há ponto de exagero aqui mas sim uma transcrição da mentalidade de muitos homens e mulheres que se escondem como lobos em pele de cordeiro atrás da sua imagem de bem sucedidos. Jorge, é o que muitos são, e desengane-se quem achar que é apenas um personagem porque ele é tão real que nos dá raiva porque traz à tona as milhares de relatos que já ouvimos.
À parte disso, os parabéns à autora Filipa Martins porque trouxe neste Jorge um dos relatos mais fiéis que já tivemos do que é, de facto, um agressor na ficção nacional numa interpretação que suspende a respiração e que coloca muitos supostos nomes grandes do cinema lá fora no chinelo.
Marco D’Almeida é, de facto, absurdo na sua interpretação, numa das melhores prestações da sua carreira, que suporta um currículo de personagens memoráveis. Nesta história é impossível ficarmos indiferentes ao seu talento, num texto inteligente e carregado da crueza do mundo real. Isto é ficção a ser, aquilo que deveria ser na maioria das propostas do género, um espelho da realidade com frieza e firmeza necessárias para não maquilhar uma história ao sabor da melhor experiência dramática, mas sim oferecer a quem vê um mergulho ousado numa intriga que é ficção mas que podia ser uma projeção mental da história que ouvimos no café.
Marco tem momentos de nos deixar encolhidos, com cada movimento a transparecer o realismo, e a entregar uma contracena de mestre a Cláudia Vieira, que brilha de igual modo nesta trama. Marta pode ser, na sua essência, um dos papéis da carreira de Cláudia Vieira pelas nuances que ela precisa de ver trabalhadas e que Cláudia consegue tocar de forma excelente.
Ela tem atitude e a postura de uma mulher que não consegue ter uma noção real do que se está a passar à sua volta, que está perdida, e que vira o seu foco para o grande amor, o filho. Além da personagem nos entregar os tais momentos de autoculpabilização em vários pontos da história, passando por um processo que é familiar a muitas vítimas de casos de violência domestica, em que acham que o que fizeram de errado em algum momento é a verdadeira causa do que se está a passar, quase numa desculpa inconsciente para as razões que levam aos atos atrozes que Jorge tem.
Mas o elogio estende-se ao restante elenco, com pena de podermos ver ainda mais cenas de Cleia Almeida que, mais uma vez, está excelente, mas que já não é uma surpresa para quem tem acompanhado o percurso da atriz, e para o jovem Santiago André que tem um futuro risonho pela frente se continuar com esta naturalidade.
No fundo, Na Porta ao Lado - Amor é tudo aquilo a que a proposta desta coletânea se compromete. É o aviso, a história, a mensagem e o realismo num trabalho de realização exímio e cenários que, verdadeiramente, ajudam a construir a nossa conceção do que é a vida daquele casal.
Este é um daqueles projetos que não pode, de todo, ficar apenas pelo acesso da OPTO SIC, porque tem uma motivação que é muito maior e que precisa, mesmo, de chegar a mais pessoas. É uma pedrada no charco que nos dá mostras de talento incríveis num elenco que está fantástico e uma história que não nos cansamos de elogiar.
Contudo, é, também, um daqueles filmes que nos deixa com uma vontade gigante de acompanhar uma sequência, que nos deixa com a pulga atrás da orelha para ver o que o futuro reservou para aquela família, sobretudo depois de um evento tão traumático. É a única coisa que faltou, mesmo que o objetivo tenha sido mesmo o encerramento num ponto que nos deixa a nós enquanto público a repensar, mas que puxa por nós, e deixa aquela vontade de saber que ficou realmente tudo tão bem quanto possível depois do encerramento daquela série de coisas negativas.
Precisamos de mais histórias como essa, e precisamos, sem dúvida alguma, de quem tenha coragem de agarrar estas histórias e contá-las com a verdade que este Na Porta ao Lado - Amor o faz, não só para despertar o sentido de alerta em todos nós, mas até, para as vítimas se conseguirem identificar com o retrato e consigam entender que não estão sozinhas, e que a história delas é a delas e tantas outras pessoas que estão lá fora e que nem conhecemos. Fiquem atentos e seguros, e sobretudo, não tenham medo.
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