COMING UP | Cruella
Os Live Action da Disney estão de volta, com menos controvérsia que o habitual mas nem por isso com menor taxa de risco. Fazer um filme sobre uma vilã sem lhe retirar totalmente a essência e sem a descredibiliza-los junto do público ao ponto de desfazer o nosso imaginário é uma carta arriscada mesmo para um estúdio com provas dadas como é o caso da Disney. Com alguns acertos e erros em Maleficent, Cruella prova que a aposta em produções que exploram o universo das animações consegue trazer-nos novidades e frescura, com uma dose de informação que é coerente com a conceção geral que todos temos da personagem. A estética é invejável, a banda sonora está no sítio certo e casa perfeitamente com o tom clássico mas ao mesmo tempo pop que Cruella carrega. Naquela que é uma das mais marcantes e ambiciosas personagens do mundo, esta não é uma leitura que desculpabiliza a figura mas sim um filme que lhe dá contexto para nos mostrar o porquê de ela ter chegado ao ponto em que a vemos com Glenn Close. De uma Emma Stone que se supera até à importância dada a personagens habitualmente secundários, oferecendo-nos novos focos de interesse, a Disney apostou alto mas venceu neste que é o primeiro grande filme no regresso às salas de cinema. Fica connosco em mais uma edição do Coming Up em que te vamos contar-te tudo sobre o retorno em grande de Cruella à sétima arte, numa viagem que é muito mais do que falar sobre a infância.
É inevitável não estabelecermos uma base de comparação entre Cruella e Maleficent. São, a par de Úrsula e da Evil Queen, duas das maiores vilãs do estúdio e talvez duas das maiores criações das animações, sobretudo pela essência tenebrosa que ambas carregam. Com isso em mente depois de termos uma adaptação cinematográfica que coloca Maleficent como uma heroína e que destrói toda aquela noção de terror quando aparece no ecrã ao ponto de nos sentirmos mal por a termos julgado, em Cruella, os argumentistas foram muito mais cautelosos e não tentaram forçar-nos a engolir uma Cruella marinada em boas intenções, simplesmente oferecem-nos razões que a mal ou a bem conseguem ser uma justificação plausível para que Cruella tenha sucumbido à loucura, numa narrativa que se foca, num primeiro momento, num dos problemas que mais crianças precisam de ver retratado nos ecrãs: O bullying. Cruella serve de exemplo para mostrar como a marginalização pode trazer sérias consequências na visão que vamos ter do mundo. Uma criança que foi constantemente mal tratada pelos outros nunca terá a mesma noção de compaixão ou de afeto, tornando possível e sobretudo credível todas as atitudes que a personagem tem daí em diante. Junta-se a isso um elemento novo, com a morte da mãe que ela acredita que é responsabilidade dela, mesmo sem assumir completamente o seu erro em público. Nasce assim Cruella, o fruto de uma sociedade em que ser diferente é sinónimo de ser colocado de lado, independentemente de tudo o que tens para oferecer ao mundo, sem sequer se darem ao trabalho de conhecer a essência por detrás das aparências. Na verdade, o filme faz uma leitura muito boa sobre o que são as proximidades criadas por crianças que são vítimas de bullying, sobretudo quando o trio de supostos vilões se junta, há ali um momento em que todos nos nos revemos em Cruella e é por isso que se torna fundamental que a película dê voltas longas para não lhe acrescentar violência gratuita ou que justifique cada ação para não a vilanizar demasiado.
A escolha de termos uma vilã maior que Cruella para termos uma figura de ódio tão extensa ao ponto de nos parecer que dentro do mau as atitudes de Cruella não são, de todo, as piores que vemos, não é a mais criativa. Aliás já a vimos dezenas de vezes, até mesmo na sequência de Maleficent, mas estranhamente funciona na perfeição. Entramos numa atmosfera que já conhecemos de outras produções, com a moda a servir de base para um ambiente tóxico em que poder é sinónimo de estilo e onde as ideias definidas sobre o que é ou não tendência são tão estreitas que deitam fora tudo o que é peculiarmente desinteressante. Já tivemos várias vezes essa representação no ecrã, mas aqui foi utilizado com a subtileza necessária para nos levar à imagem que todos concebemos de Cruella. “Queres ver o carácter? Dá-lhe poder”, por mais que esta frase feita se torne no futuro da personagem na definição de um falhanço, porque a Cruella que conhecemos aproxima-se em muito da imagem que temos da Baronesa, por enquanto temos uma figura intragável dentro do universo certo, numa interpretação brilhante de Emma Thompson à qual se junta um guarda-roupa invejável, e que demostra muito bem que a Disney continua a não desleixar as suas produções. A história em si é algo clichê, mas o trabalho desenvolvido pelos autores foi feito de uma forma tão subtil que convence e deixa-nos embevecidos pelo seu tom clássico que coloca Cruella na mesma linha de criação de Andy Sachs, de The Devil Wears Prada, sem perder o lado de vilã. Aliás, o grande trunfo que a película tem do seu lado é a capacidade de dar um tom híbrido à personagem, que não desculpabiliza mas também não exagera. No fundo é uma história de ascensão credível que casa totalmente com o imaginário coletivo que temos da figura, e isso é fundamental para não parecer que estão a criar uma outra história utilizando apenas o nome de uma personagem de peso. Aplausos para isso.
E já que falamos em aplausos, o elenco tem dois grandes pontos positivos, e não, não estamos a falar de Emma Thompson, que apesar de estar bem, a sua personagem é linear demais para que roube espaço dos holofotes. Vamos começar pelo destaque obvio e mais que merecido a Emma Stone, que mostra mais uma vez que é uma atriz multifacetada. Do circuito das produções de Oscars para o mundo mainstream, Emma Stone é um daqueles talentos que não falha, nada que não tivesse provado anteriormente no seu extenso currículo que vai desde Magic In The Moonlight, La La Land e Battle of the Sexes até Zoombieland com a mesma coerência apaixonante, mas que aqui toma novas proporções por agarrar com unhas e dentes um papel que nós já vimos interpretado por uma grande figura do cinema numa adaptação sem mácula e que perpetua na nossa memória até hoje. Ela chega sem se impor como uma cópias mesmo tempo que não se torna numa visão exageradamente distante da que vimos com Glenn Close, como já dissemos, o filme cumpriu a proposta de nos mostrar o crescimento de Cruella, e sim, sem sabermos, nós precisávamos de conhecer a Estella, para mostrar que as pessoas não nascem pura e simplesmente más, mas sim que há um essência, que há uma razão, um ambiente que as leva a ganharem o desprezo pela sociedade. A crítica maior passa pelo tempo em demasia em que temos no ecrã Emma Stone, com o seu cabelo original e no seu lado mais afável. Emma Stone é uma das artistas mais expressivas de Hollywood e talvez se o visual de Cruella tivesse sido mantido por mais tempo, até para dar continuidade à ideia de bullying que o arranque da trama institui, conseguíssemos ter uma ideia mais distante da atriz e mais próxima da personagem que conhecemos. É um daqueles problemas que as produções deste género enfrentam por terem como protagonistas nomes tão marcantes, Emma Stone é um daqueles talentos que todos conhecem e por isso torna-se quase impossível, no seu visual mais comum, olharmos para ela e vermos Cruella. Mesmo assim, no momento em que se dá a grande viragem da personagem, ela consegue ter um tom e uma altiveza que surpreende dentro do habitual ar de princesa da Disney que reconhecemos na atriz. Uma orientação de mestre na carreira de Emma Stone que prova assim, de forma bem subtil, que está pronta para fugir dos lugares comuns em que a têm colocado.
Mas já avisamos que no elenco os destaques são dois. E a segunda menção é para ninguém menos que Tipper Seifert-Cleveland, um nome que pode não nos dizer muito para já mas que no futuro tem potencial para brilhar nos grandes títulos de Hollywood. Falamos da jovem que nos introduz Cruella no arranque do filme e que está simplesmente brilhante na pele da vilã. Do tom até à expressividade, é um talento em bruto que de certo não ficará muito mais tempo nas sombras e tem potencial para entrar no circuito de estrelas da fábrica da Disney que tão bem conhecemos. Por mais que o prólogo da longa-metragem tenha sido um pouco mais longo que o necessário, a verdade é que a jovem atriz conquistou ao ponto de queremos ver mais cenas com ela. Convenhamos que já tivemos uma extensa lista de versões de Cruella, entre séries e filmes, mas aquela essência de mistério e sombria que temos da personagem encaixou na perfeição em Tipper, entregando de antemão uma audiência que já estava rendida à recriação de Cruella muito antes da primeira cena com Emma Stone, e numa primeira fase faz muito pela definição da figura, dado que, tal como já dissemos, passamos demasiado tempo com uma Cruella sem as suas cores habituais. De resto, o elenco sai irrepreensível, muito por culpa do guião, que não compromete nem ridiculariza os personagens ao pontos de os tornar em caricaturas. Aliás, outro dos grandes acertos neste Live Action é a profundidade que é entregue aos núcleos secundários e que nos entrega pessoas com real consciência. Há uma razão plausível que nos faz acreditar que Jasper e Horace não são apenas escravos de Cruella e que explica muito bem a forma cega com que eles seguem todas as ideias loucas da vilã, o amor não consumado entre Jasper e Cruella é bonito de ver transposto, com Jasper a entrar para a lista de adaptações de sucesso da nova leva de produções com atores de carne e osso apresentadas pela Disney.
No fundo, entre a mensagem e o trabalho de criação, a avaliação de Cruella é bastante positiva e não compromete o original ao ritmo que nos traz uma proposta nova que realmente prende toda a família ao ecrã. Faz mais pelo clássico que Maleficent e traz os acrescentos necessários para equipararmos a adaptação à de Aladdin, que até agora detinha o título de melhor versão Live Action das animações da Disney. A banda sonora e o guarda-roupa vão ser destaques nos grandes premiações, com o filme a conquistar com muita antecedência um lugar entre os candidatos à próxima cerimónia dos Oscars, mas é a surpresa de depois de um falhanço total com Mulan, conseguirem voltar a fazer-nos acreditar que estas adaptações são de facto viáveis, o grande ganho da Disney com este projeto. Talvez o maior ponto fraco esteja relacionado com introdução a martelo de personagens originais da franquia dos Dálmatas, com uma Anita que não precisava de estar da história e sobretudo com a entrega dos cães no final que acaba por desvirtuar um pouco o original. E já que falamos em cães, agora se prova que Cruella não é apenas um monstro insensível e que por mais que a sua fixação por pele de Dálmatas continue questionável, existe pelo menos um motivo para que ela não sinta o mínimo de remorso por esfolar os animais. É um acerto feliz na sua larga extensão, talvez com cenas a mais, que se retiradas faziam do resultado final um projeto ainda melhor, mas já nos deixa aquele calor da nostalgia com uma película que teve, claramente, de ser cuidada com pinças, por, ao contrário de todos os outros projetos trabalhados até agora na sequência de Live Actions, esta ser uma história que já conhecemos, também com atores de carne e osso e pela qual, aliás, temos mais carinho pela versão de Glenn Close que pela animação. A Disney venceu o duelo por um projeto que tinha tudo para ser condenável, mas no final das contas é o público que fica com lágrimas nos olhos e a desesperar por mais, e é por isto que é de longe o maior estúdio de Hollywood.
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