COMING UP | Jupiter’s Legacy
Continua a jornada de transpor para os ecrãs histórias de grupos de super-heróis na tentativa de replicar o sucesso incontestável do Universo Cinematográfico Marvel noutras plataformas. Jupiter’s Legacy é a nova aposta da Netflix, mas ao contrário de outras produções do serviço de streaming neste género, desta vez o tiro não foi certeiro oferecendo uma narrativa que tem discussões interessantes mas que acaba por se tornar inconsistente. O universo que aparenta ser rico e com várias opções por onde explorar acaba por não conseguir entregar um desenvolvimento que nos deixe colados ao ecrã, com alguma falta de empatia à mistura por querer introduzir muitos temas sem dar espaço para que os seus arcos tenham a respiração necessária ao longo dos episódios. Apesar de contar com algumas falhas, que vão desde a técnica à interpretação, Jupiter’s Legacy poderá ser uma aposta segura caso a próxima season saiba limar as arestas com uma maior cuidado e tenha, sobretudo, um foco que sirva de bússola à história. Por enquanto, os oito capítulos que compõem a primeira leva, apelidada de Volume 1, terminam com a sensação de que este foi um prólogo extenso para um evento maior que deverá acontecer na segunda fase do enredo. Na verdade, e levando em consideração algum do historial recente da Netflix, este parece ser mais um daqueles casos em que os episódios de produção foram divididos em dois lançamentos para transmitir aos utilizadores que existe um maior fluxo de conteúdo, porém, se em outras produções, como Lúcifer, esse esquema funciona, Jupiter’s Legacy pode correr o risco de não aguentar o impacto da divisão e afastar público que ao acompanhar a história completa poderia ter criado um maior interesse a respeito dos personagens. Uma jogada arriscada da plataforma de streaming numa fase em que a luta de gigantes no digital se adensa e que serve de mote à discussão da edição desta semana do Coming Up. Fica connosco e sabe o que temos a dizer sobre a mais recente série de heróis da Netflix.
Vamos já à questão central que serve de fio condutor a este primeiro volume da narrativa de Jupiter’s Legacy. Todas as vidas merecem ser poupadas, mesmo que estejamos a falar de pessoas de má índole. A questão que num mundo fantasiado parece ser algo até simples de responder, quando aplicada à entoação realista que a série quer transparecer ganha novos contornos, com o mundo fora daquela bolha e no qual nós vivemos a discutir cada vez mais este tema mas com contornos menos sobrenaturais a envolver o problema. Na verdade, parecemos ter algum facilitismo em tomar uma posição sobre o tema dentro daquele enredo mas se tivermos uma visão mais profunda podemos entender que não é algo tão “preto no branco” como aparenta e que esta pode ter sido a grande carta fora do baralho no caminho de Jupiter’s Legacy, porque realmente nos deixa a pensar para lá no óbvio. Essa criação de consciência que vem sendo trabalhada no público que consome as produções do universo dos Avengers, é um trunfo extremamente bem utilizado pelo argumento da série, que ainda eleva a questão a outros pontos apresentando-nos uma realidade em que se não existissem regras, ou o famoso código como lhe chamam durante os episódios, era fácil para quem tem poderes especiais conseguir dominar o mundo e criar uma ditadura à sua imagem. Algo que há uns tempos poderia ser difícil de idealizar mas que agora já temos materializado em The Boys, da Amazon. Contudo, é nesta comparação que surge o grande ponto de discórdia que acaba por afetar um pouco a qualidade do texto de Jupiter’s Legacy, é que apesar das questões serem bem colocadas e exploradas parece que falta alguma coragem para ir mais fundo e apresentar ao público esse lado mais perigoso dos heróis, é uma espécie de consciência velada que está amarrada nas ideias que o público pode construir mas que a série não mostra por receio de que os espectadores criem uma imagem negativa a priori dos heróis da produção. Por mais que seja algo mais seguro para não criar uma rejeição do público, não deixa de ser um ponto negativo quanto é esse factor que poderia fazer a diferença entre esta e as outras séries do género, numa época em que enredos baseados em histórias de heróis surgem a todo o momento, inclusive, dentro do catálogo da Netflix.
É precisamente por isso, por já existir uma boa base de comparação, que Jupiter’s Legacy acaba por perder uma fatia de público que já viu muito do conteúdo da série apresentado noutras produções de forma muito melhor e com maior estrutura. Mesmo no aspeto técnico, a série acaba por nos perder por alguma preguiça na edição dos efeitos especiais, que são melhor utilizados, por exemplo, em Shadow & Bone que chegou recentemente. A imagem mais escura que nos aproxima à realização dos filmes do Universo Estendido da DC também não abona a favor da produção, sobretudo em momentos mais monótonos, porque sim, apesar de contar com episódios numa média mais curta que o habitual para os originais da Netflix, há vários momentos em a narrativa parece estar a marinar num prólogo longo que serve para dar impacto ao plot twist dos últimos minutos do capítulo final mas que à parte disso só serve para nos cansar com constantes idas e vindas entre passado e futuro. Por mais que a maioria dos fãs deste género de produções sejam até um pouco picuinhas com a base da história, a verdade é que em Jupiter’s Legacy essa base resulta numa gigante bola de neve que acaba por tornar os episódios inconsistentes em relação ao ritmo, além de passarmos um longo período de tempo em que o drama prevalece sobre todos os outros géneros que preenchem a história e que por isso a tornam mais pesada, é um daqueles dramas que pouco acrescenta e que acaba por cair nos lugares comuns das discussões sobre as dicotomias familiares. Na visita ao passado toda a narrativa tem uma base tão realista quanto possível, mesmo que parece ter alguns momentos em que parece beber influências da franquia de Indiana Jones, e esse realismo acaba por ser um contraste demasiado grande e até, por vezes, conflitante, com o ponto em que a história no presente está. São dois momentos que separados poderiam funcionar muito bem mas que juntos são um aglomerado de situações desconexas. Talvez a série tivesse tirado maior partido dessa busca por uma base sólida se tivesse dedicado a duração total de dois episódios no meio deste primeiro volume a apresentar-nos o background, serviria o propósito e não resvalava em oscilações que nos deixam de pé atrás na hora de decidir se avançamos ou paramos nos episódios.
Esse tempo extra que passamos a ver os eventos do passado até poder ser interessante do ponto de vista de criação de carácter, mas mesmo aí acaba por entrar numa espécie de choque, porque temos duas visões de Sheldon que acabam por ser opostas. Temos o Sheldon do passado que mesmo fanfarrão e com espírito de liderança acaba por ser um piegas apaixonado pela família, enquanto no futuro temos um homem durão que cumpre as regras com unhas e dentes e que dá origem a uma série de elementos conflitantes no seio da sua própria família, tornando as duas visões do mesmo personagem algo incoerente sem uma justificação plausível no texto para que essa alteração aconteça. Terá sido o choque da morte do pai? No início é isso que imaginamos, mas o argumento revela-nos que mesmo depois do suicídio do progenitor não há nenhuma mudança drástica na sua personalidade. Outro ponto interessante é a relevância que ele dá aos trabalhadores da fábrica mantendo até uma relação de proximidade ao ponto de o terem como figura de referência, enquanto no futuro já nem os nomes dos super-heróis da União ele conhece. Vemos Sheldon em sessões de terapia, mas falta ali uma linha de texto que seja, um diálogo que nos indique a razão da mudança brusca de comportamento. Mesmo que o público não precise que tudo lhe seja dito, há coisas que não podem ficar simplesmente esquecidas de dizer, sobretudo no arranque de uma nova produção onde a empatia com os protagonistas é o grande trunfo para garantir que no futuro os fãs vão continuar a querer assistir às sequelas. É um daqueles casos em que exigimos respostas, para evitarmos considerar isto um erro. Terá sido o peso da responsabilidade? Se for, que explorem a questão um pouco melhor e de forma mais clara, porque essa abordagem seria certamente interessante de se ver.
Mas já que falamos em protagonistas, Brandon é talvez o personagem mais injustiçado de Jupiter’s Legacy e cheio de potencial para ser debatido. É ele quem mete em cheque o código dogmático que gere todo o universo e depois de três episódios em que os holofotes estão constantemente em cima dele, acaba por perder espaço em detrimento de arcos que chamam a atenção de públicos mais comerciais, como o caso do núcleo de Chloe. O resultado aqui é que nem uma nem outra história têm um resultado perfeito. Enquanto Brandon arrasta a sua questão do primeiro ao último episódio andando em círculos que parecem não levar verdadeiramente a lado nenhum e não trazem nada de novo no desenvolvimento pessoal do personagem, Chloe tem um chorrilho de eventos que o momento em que se estava a tornar verdadeiramente interessante de acompanhar dá lugar a uma relação amorosa colocada às três pancadas que parece servir única e exclusivamente para preencher a quota do casal de jovens pelo qual os fãs devem torcer. Por mais química que tenham a conexão entre eles é fútil e vazia e parece nascer do ar, desprestigiando o contexto que a série, até então, se tinha esforçado para criar em todos os elementos da trama. Mas há outro pormenor que vale destacar, a atuação de Elena Kampouris é um dos pontos mais fracos de Jupiter’s Legacy, por cair constantemente num exagero forçado em que debita diálogos sem emoção. Não é caso único no elenco, em que Leslie Bibb, a intérprete de Grace também tem muitos pontos altos e baixos e que falha redondamente na cena em que a personagem diverge de Sheldon. Vale o carisma de Josh Duhamel, o grande nome do elenco, que realmente faz justiça ao destaque que tem mas que acaba por ser, muitas das vezes, alienado pela caracterização que em muitos pontos parece ser um cosplay, e não, não é apenas por se tratar de uniformes de super-heróis, porque temos, mais uma vez, o exemplo de The Boys, que transpôs os uniformes coloridos para os ecrãs de uma forma fidedigna e sobretudo realista.
Mesmo sem convencer totalmente, há margem para melhorias em Jupiter’s Legacy que perde muito por não ter todos os episódios que deveria ter lançados em simultâneo, deixando demasiadas pontas soltas sem que os fãs tenham grandes esperanças de ver solucionadas, porque até agora a narrativa se posicionou como um cata-vento dos lugares comuns do que é comercial. Perde também por não apresentar um grande evento que nos deixe um lembrete de que existe esta série, encerrado com um acontecimento que é digno das famosas mid seasons mas que não é um catalisador que nos faça regressar ao enredo por termos vontade de ver mais. Em termos de estrutura é impossível compararmos com a força da máquina bem oleada da Marvel ou até da DC, mas dentro do catálogo da Netflix The Umbrella Academy é um produto do género que está bastantes furos acima de Jupiter’s Legacy, e mesmo em Fate: A Winx Saga ou Warrior Nun parecia existir muito mais margem de progressão dos universos para as futuras sequências. Mesmo em termos de criação de poder, o momento em que os protagonistas se consagram como heróis e recebem as suas habilidades é um downgrade dentro do género, ao ponto de já termos temporadas de Power Rangers com origens mais criativas para a conceção de uma equipa. No fundo, o grande ponto forte são as discussões mais realistas que apresenta sobre como seria um mundo em que os super-heróis convivessem entre nós, e que esperemos que na sequela tenham um maior impacto para tornarem a série autossuficiente e longe de outros possíveis paralelos que já existem no mercado. Parece que a Netflix tentou surfar uma onda lucrativa, mas a aposta desta vez foi no cavalo errado, que mesmo tendo linhas para construir um novelo diferente se coíbe de ir além do que o marketing dos super-heróis já vem vendendo nos últimos anos.
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