COMING UP | Até Que a Vida Nos Separe
Conciliar as boas influências do género clássico com os olhos no futuro é a proposta de Até Que a Vida Nos Separe, que ainda arrisca por tentar dar aos seus personagens densidade dramática enquanto nos fazem rir. Um exercício acrobático que não poderia resultar melhor e volta a provar que a ficção nacional está viva, sem medo de evoluir e ciente da necessidade de nos fazer rir sem cair na gargalhada escancarada. Da eloquência do texto que facilmente podemos descrever como uma aula leve sobre as responsabilidades da vida adulta e as mudanças emocionais e biológicas que nos fazem reorganizar comportamentos e ideias até à força da estética, Até Que a Vida Nos Separe traz a sobriedade e cor que servem de embrulho a uma história de amor e família. Conhecem aquela sensação quando vemos um filme ou uma série de que grande parte do que vemos no ecrã são as histórias do nosso vizinho do lado? É nessa linha de veracidade elevada na experiência de um elenco que sabe como trabalhar um bom argumento que a série chega como um balão de oxigénio para nos distrair. Distrair e entreter são as palavras de ordem numa série que também tem a sua moral e que chega em bom altura para juntar a família em torno de um produto português que seduz nos timings e investe na discussão do que são, agora, as convenções da sociedade. Vem connosco em mais uma edição do Coming Up em que te explicamos porque é que vais querer ver a série da RTP que chegou esta semana à Netflix.
Vamos começar pela técnica onde nos cinco minutos iniciais, na cena com Isabela Valadeiro, são um verdadeiro exemplo com uma banda sonora perfeita e, sobretudo, nacional, acompanhada de uma paleta de cores tão vibrante quanto a proposta do argumento. Em termos estéticos estão lá as influências coloridas que têm chamado a atenção e merecidos elogios em séries do Disney+ como The Mandalorian, o que só por si já é uma prova de talento gigante quando estamos a colocar como grau de comparação o meio cultural nacional e as suas limitações de budget na mesma linha que um dos maiores impérios da televisão, são contextos de concepção diferentes mas a importância da cor é notória nas duas. Porém o ênfase na estética não se fica por aí, com os quadrados que dividem o episódio bebendo inspiração das clássicas longas-metragens de comédia são a ponte perfeita para entendermos um produto que quer realmente afirmar-se como algo diferente sem perder a essência das origens, sem deixar para trás o passado da indústria para tentar entrar no modernismo diferente. Na mesma linha de conta nota-se a avidez do progresso na narrativa, que tenta fazer humor de uma forma eloquente, eclética e abusar da dicotomia entre moderno e old school que constrói o aspeto técnico da série. Há um casamento perfeito do texto com o aspeto, o que só por si já é um paralelo brilhante com o tema central da série. No fundo, Até Que a Vida Nos Separe apresenta-se feita de paralelismos e detalhes encadeados por uma equipa de equilibristas que sabe muito bem os pontos em que quer tocar.
Na construção dos personagens essa mensagem subliminar de engajar o novo com o velho nota-se ainda mais. Além da óbvia referência a isso com o envelhecimento da protagonista, todas as outras personagens acabam por ter nos seus próprios arcos conflitos que fazem divergir passado e futuro. Vanessa serve de mote para uma conversa sobre menopausa enquanto repensa a sua vida, mas também Daniel tem o assunto latente, preso às aspirações de sucesso dos tempos em que era um jovem sonhador para agora começar a conformar-se com a dura realidade da sua área profissional. Nem Rita e Marco escapam a essa interpretação de passado e futuro, com Rita na flor da idade a ser confrontada com visões negras do que significa um matrimónio que destroem por completo a ideia do tradicional felizes para sempre, e Marco, a tentar lutar pelo futuro do ambiente, do planeta, de olhos postos no amanhã em contraponto com a educação clássica dos avós paternos. Mas o texto não se fica apenas pela densidade dos membros da família Paixão, até o humor é utilizado para marcar esse ponto de ruptura. Num quadrado tão clássico quanto os filmes a preto e branco ou as sitcoms britânicas aparecer: “Foram estas trompas de falópio que te fizeram tão bonita”, já faz rir qualquer cinéfilo e é mais uma catch phrase que promete entrar no top dos bordões trazidos pela ficção nacional. E já que falamos em clássicos, o momento de Vanessa no comboio com o seu pequeno delírio de Diva é mais uma prova de como a brincadeira de juntar a beleza da estética antiga com um texto mais desconstruído funciona perfeitamente e só ajuda a estabelecer o tom da série, que até pode não ser para todos, mas consegue fazer rir qualquer família, em conjunto. Não é um conflito de gerações, é trazer o melhor dos dois mundos para um ponto comum, funcional e divertido. Porém não deixa de ser divertido procurar referências em cada diálogo, dá um senso de imprevisibilidade que só recentemente as séries nacionais entenderam que o público precisava.
Já falámos das personagens, mas precisamos de explorar um pouco este elenco. Se em Solteira e Boa Rapariga, Rita Loureiro já tinha cativado, aqui fica a prova de que há muito por descobrir sobre a atriz. Naquele que podemos arriscar dizer que é o melhor papel da carreira de Rita Loureiro, a forma como veste Vanessa é a de quem sabe o que está a fazer, bebendo de todos os delírios da personagem sem medo da forma como isso possa transparecer e entregando ao público duas versões coerentes de uma mesma personagem, a Vanessa quando está perdida nos seus pensamentos, e a Vanessa mais séria que é mãe e mulher, sem perder nas duas a boa disposição que é o elo de ligação entre os dois estados da personagem. Temos de fazer uma menção, também ao facto de neste ponto especifico o casting da série fazer serviço público, colocando uma atriz que apesar de conhecida não é uma figura tão próxima do público mainstream, arriscar só nos acrescenta e neste caso prova que a ditadura de serem sempre grandes figuras do estrelato nacional a assumirem papéis de destaque nos está a privar de encontrarmos performances tão convincentes e, sobretudo, diferentes quanto a de Rita Loureiro e a sua Vanessa. A contracena com Madalena Almeida é um trabalho de mútuo acrescento, numa ligação em que a melhor palavra que encontramos para definir é genuína. Que Madalena Almeida é um próximos grandes nomes da ficção já ninguém dúvida, mas a forma como tanto ela quanto Rita Loureiro bebem o melhor que está no guião transmite a tal sensação de proximidade com o público que falávamos no início da nossa análise.
Pode ser mera coincidência, mas sente-se a mesma estima quando Dinarte Branco e Diogo Martins dividem a tela. Há uma sensação de parceria entre os dois como existe nas boas relações entre pais e filhos. Dinarte Branco e o seu Daniel são o contraponto do humor do arco de Vanessa até um certo ponto. São dois tons diferentes, que se conjugam bem mas que provam como o argumento consegue ser multifacetado. O humor de Daniel é mais raíz, da piada mais típica mas nem por isso má, até porque o ator e o guião têm o controlo perfeito para não deixar até a comédia feita com o universo mais brejeiro cair em algo que resvale para o mau gosto. Pelo contrário uma das cenas mais divertidas do primeiro episódio acontece a partir de uma piada com testículos, com Dinarte Branco e Albano Jerónimo a saberem fazê-lo de forma tão corriqueira como qualquer conversa real entre amigos. É nesta bolha de realismo que Dinarte consegue realmente destacar-se, e dar a conhecer mais um pouco do seu talento, aplicando-se a mesma linha de pensamento que temos com Rita Loureiro. Até Que a Vida Nos Separe vem colocar como protagonistas os interpretes que em televisão aparecem como personagens secundárias e para quem tinha dúvidas sobre as capacidades, Dinarte Branco ao lado de Albano Jerónimo conseguiram fazer-nos rir, puxar pelas nossas emoções e conseguir que nos revíssemos nas suas personagens exatamente na mesma medida. Mais uma vez numa contracena desprovida de egos, com Albano Jerónimo a ser, como já é típico, um gigante em cena. E temos Diogo Martins, o talento confirmado que só vem certificar-se ainda mais com este Marco, que ainda tem muito por onde ir, mas que já nos conquistou pela humildade. Numa única cena Madalena Almeida e Diogo Martins conseguem passar a ligação de amizade de dois irmãos, com meia dúzia de linhas. Querem mais provas de como estamos bem servidos com esta história? O elenco fala por si.
O que faltou? Num primeiro episódio que nos prende e que nos passa a verdadeira sensação de família sem que os personagens estejam juntos durante grande parte da trama, há um ponto que quem assiste sente falta. Quando nos introduzem a Catarina, Bruno e Guilherme, o trio consegue prender-nos. O início já nos dá vontade de nos envolvermos com aqueles personagens, e o desenvolvimento só prova que há tanto por explorar naquela relação, que sem dúvida é o expoente máximo da linha da modernidade na série. Faltou vermos mais das linhas que cosem aquele triângulo amoroso, por mais claro que tenha ficado o relacionamento entre os três personagens, ficou a curiosidade de irmos mais longe. Se bem que, tendo o pai de Guilherme como uma das personagens do elenco fixo já deixa antever que esta não será a última vez que ouvimos falar deste matrimónio triplo por isso o ponto negativo que temos a apontar a este episódio pode facilmente ser um antecipação na nossa análise. A construção do primeiro capitulo sai sem mácula, até porque temos de ter em conta que é um episódio que tem o peso da responsabilidade de nos apresentar a essência dos protagonistas e de uma série inteira, o resultado não poderia ser mais positivo, agarrando-nos pela proximidade e veracidade com que as situações, por mais inusitadas que sejam, são construídas. Até Que a Vida Nos Separe, pela sinopse já nos apresentava um possível limbo entre o drama e a comédia, mas o que tivemos no resultado final deste primeiro capitulo foi uma primeira parte dominada pelo humor e uma segunda já com um desenrolar do drama e conflitos dos personagens, um pouco mais terra a terra, no fundo parecem ser duas forças que convergem para se encontrar no meio termo equiparando-se e mantendo uma base que já desenhou sucessos como Modern Family, se a despirmos da premissa de falso documentário e das suas mensagens pela representatividade, ou até a aproxima do mesmo público que assiste a Esperança de César Mourão. Uma aposta que vem agitar águas e que merece que o público lhe meta os olhos em cima, vai valer a pena!
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