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Conto • "O céu está estragado"

 

Na ponte inverniça entre o que é e o que há de ser, o do momento talvez não o seja porque no futuro será diferente. O vento faz abanar as folhas de árvores todas diferentes com o mesmo nome através das nortadas que por ali se vão sentindo. As nuvens olham sempre preparadas a desaparecer, as árvores permanecem firmes e prontas a ficar por onde estão anos e anos e anos. Passam por ambas as coisas num vagar frenético, não prestando atenção, cientes de que, em princípio, seremos menos efémeros que as nuvens e mais mortais que as árvores. Eles caminham por debaixo das nuvens e entre as árvores que já cá estavam. Ao olharem para cima fitam brevidade, para a frente, a sua mortalidade, nem que seja por se verem uns aos outros.

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Os retratos e fotografias faziam-no chorar. Era nas sombras do quarto escuro que via as caras daqueles de quem gostava. Há dias em que volta a relembrar tudo o que aconteceu e deixa de acreditar no livre-arbítrio. Pensa: “Somos escravos de demasiadas coisas”.

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 A sua maior prisão eram as pessoas que não podia continuar a amar.

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“O céu está estragado”, disse um miúdo que passava naquela estreita rua com sua mãe. A que propósito terá dito a frase em questão prevalece mistério sem solução óbvia ou sequer possível, mas parece evidente que só uma criança diria tal coisa sem temer as factualidades a que os adultos estão sujeitos e habituados. Talvez o céu esteja mesmo estragado e ninguém saiba porque nunca viu outro. Talvez o miúdo que apontou a falha ao céu saiba do que fala e os restantes estejam todos errados, quando, em certos dias, miram a paisagem celeste pensando que assim é bela, não sabendo que, por sua vez, a ruína está perto e ele sofre. Ou então, num outro cenário, aquela criança é confrontada com a realidade de que aqueles que partem não ficam no céu como lhe contaram até àquele dia. Podia estar somente triste por pensar que, se olhasse para o céu, não viria a cara do seu avô e este se sentiria desolado por estar longe do neto.


Texto: Luís Rodrigues
Ilustração: Filipa Contente