COMING UP | The Devil All The Time
Setembro é o mês das novidades, marca o início da reentré no audiovisual e normalmente é uma época pela qual muitos fãs anseiam porque significa que todas as séries que acompanham regressam com novas seasons. No cinema não é exceção e o início do outono marca o arranque da fase pré-Oscar com os estúdios a alinharem as suas grandes produções em direção aos meses de premiações do início do ano. A Netflix já arrancou a todo o vapor com The Devil All The Time e mesmo que não seja um tiro tão certeiro quanto Two Popes, The Irishman, Marriage Story ou The King, o novo filme de António Campos traz influências de Quentin Tarantino e uma trama que navega fundo no lado podre da religião, entrando sem medos no fanatismo com um enredo que começa por não nos despertar especial afeição mas que culmina num enredo que se amarra de forma pouco óbvia. Tem cheiro de Oscar para as atuações, com bastantes destaques na direção técnica e um argumento que tenta tocar em vários pontos com muitos arcos a acontecer em simultâneo, mas que não se perde, no final tudo faz sentido, mesmo aquilo que parece estar a servir de empecilho ao ritmo da história. Mesmo que não conquiste espaço nos eventos de prémios, The Devil All The Time não envergonha e já conquistou lugar no grupo de qualidade do catálogo da Netflix. A recente aposta em produzir para streaming produtos com atributos iguais ou melhores do que os que são feitos a pensar no cinema, é uma vantagem enorme para um acervo de uma plataforma de streaming que encontra agora vários competidores agressivos neste modelo de mercado, mas no fundo quem ganha somos nós, o público. A mais recente longa-metragem que tem tudo para se tornar um sucesso é o tema desta semana do Coming Up. Vem connosco e entende porque podemos esperar novas indicações para a Netflix nos próximos grandes certames.
A trama arranca com muito para explicar. É necessário mergulharmos com alguma profundidade dentro do contexto das várias famílias para entendermos o que vem a seguir, mesmo que isso custe algumas fases mais lentas e personagens que criam menos empatia com o público nos primeiros quarenta minutos de filme. Contudo, é na primeira metade que o foco sobre o reverso da medalha da religião está mais presente, trazendo à tona a forma como os antigos entendiam o papel de Deus. Mais do que uma força em que se agarram, no plot de The Devil All The Time, Deus é a justificação para tudo, não há nada que aconteça que não tenha mão divina e no fundo tudo pode ser feito porque se acontece dessa forma é porque Deus assim quis. Vamos ignorar o quão errado é este tipo de pensamento e entender que a falta de cultura nos leva a acreditar em tudo o que é dito por quem é mais literato. Não é errado acreditar, mas é erradíssimo quando se pensa nesta entidade como alguém castigador, é errado levar de forma literal as parábolas. É deste erro que nasce a construção de Roy, um homem que acredita que Deus nos vai punir com os nossos piores medos, porque assim tem de ser, porque todos pecamos, e por mais que a mentalidade do personagem seja colocada em causa deste o primeiro momento, só entendemos a gravidade da situação depois de ele ter estado confinado e na sua loucura passar a crer que Deus o abençoou com poderes de salvação e cura. Uma autêntica loucura provocada por uma crença fanática e desmedida em que se confunde religião com bruxaria. No caminho inverso, temos outro Deus, o Deus que acode todos os males se as nossas preces forem suficientemente altas. Ignorando os atos falhados das nossas vidas e acreditando na presença de Deus apenas no momento em que precisamos dele, como é o caso de Willard.
No meio desta discussão que já é bastante polémica, António Campos, realizador do projeto, ainda se deixa imbuir por um espírito “Tarantinesco” na hora de nos mostrar as cenas de ação com um realismo que pode ser chocante mas que se torna num trabalho exímio para aproximar que vê da realidade do filme. Há sempre muito a acontecer, até porque aqui não há apenas uma história única, mas um conjunto de dramas que vão acabar por desaguar todos no mesmo sítio. E todos têm a sua importância, e até uma leitura bíblica para quem é mais versado no catolicismo. Juntar religião e violência no mesmo enredo é ousado mas funciona pela forma como se expõem os dois lados da moeda, o bom, representado por personagens como a avó do protagonista e Lenora, e o mau que é apresentado por basicamente todas as outras figuras que orbitam à volta. Ninguém é infalível em The Devil All The Time, contudo mesmo com toda esta premissa que quer abordar o abuso de poder, a submissão ao clero, o Deus castigador e as confusões mentais, os autores ainda conseguem passar uma imagem que não é uma crítica à religião, mas sim à forma como aquelas pessoas em específico a viverem. Um percurso muito mais arriscado, porém que consegue colher frutos que não são habituais neste género de obras que escolhem mostrar o lado negro das crenças.
A
estrada do guião de The Devil All The Time é reta até aos quarenta
minutos, depois entra numa rotunda em que os vários arcos que pareciam conviver
entre si se separam para depois voltarem a coexistir no mesmo plot principal.
E isto pode ser confuso num determinado ponto porque torna-se difícil,
sobretudo no início, entender as relações entre personagens. Aliás é esse o
motivo pelo qual os primeiros minutos podem acabar por deitar toda a qualidade abaixo
porque no meio do turbilhão de coisas que acontecem os personagens acabam por
perder a oportunidade de criar empatia. A brutalidade da morte de Helen foi
chocante mas não nos deu aquela sensação de que foi algo que nos custou, até
porque a personagem aparece em poucas cenas antes de sabermos o seu destino e
acabamos de passar por momentos bem mais dramáticos com o plot que envolvia
Charlotte, esse sim bem mais memorável. Mia Wasikowska foi um talento desperdiçado
num casting repleto de estrelas, sendo superada pelo talento de Bill Skarsgård,
que nos deixa com pena de não ter tanto espaço de ecrã como merecia, e Harry
Melling, que depois de um péssimo vilão em The Old Guard aproveitou
aquela postura de homem lunático para arrasar como Roy. O fanatismo sem limites
de Roy dá o tom para o resto do tempo de filme e tira-nos o conforto de achar
que este é mais um filme sobre igreja, religião e crenças, ele vem romper com o
estereótipo, mesmo que o trabalho maior seja da equipa que construir a
personalidade do personagem e não do ator. Foi um bom casamento do casting,
mas se o papel já é tão bom nas mãos dele imaginemos o que seria se fosse
interpretado, por exemplo por Skarsgård? O show seria muito maior!
Em maré de personagens e atores, há uma nova geração a tomar conta de Hollywood e mesmo que Tom Holland ainda não possa ser olhado com a mesma exigência com que vemos Timothée Chalamet, em The Devil All The Time, o seu Arvin é um pulo gigante que mostra que ele é um dos grandes nomes do amanhã. De um amanhã que começa hoje, porque o ator é facilmente um dos grandes destaques da longa-metragem com uma interpretação que se molda ao passado do personagem e que vai subindo de densidade lentamente. O ritmo do projeto assenta muito na forma como Arvin entende o mundo, parando para pensar o filme gira muito em torno da visão de Arvin sem ser preciso que esteja nas cenas todas, o narrador toma-o como os seus olhos, na verdade até se pode comprar a ideia de que é ele que nos está a narrar a trama. E isso explicaria a intensidade com que é descrito o suicídio de Lenora, mesmo sem que nada de extremamente específico seja mostrado e até com algumas ideias meio romantizadas sobre o seu estado de espírito no momento. O trabalho do ator a partir do gatilho emocional que é a saída da irmã adotiva só melhora, e por mais questionáveis que sejam as suas atitudes o embrulho que a interpretação de Tom Holland lhe dá vende-nos credibilidade e continuidade seguindo a lógica do passado, da educação, das experiências que ele teve e do exemplo que o seu pai lhe deu na forma como resolvia os problemas. As últimas cenas são envolvidas na aparência frágil de Tom Holland, mas mesmo isso não parece ser um mero acaso ou fruto de inexperiência, porque na cena em que Arvin mata o Padre Preston a sua atuação é regada com uma postura forte, fechada e sem essa marca de jovialidade e imaturidade que tem no final do filme. Já agora vale apena referir que Robert Pattinson é mais um que merecida mais espaço, mas mesmo com cenas mais reduzidas consegue entregar um trabalho muito bom, que noutros moldes e num ano em que a concorrência não fosse aguerrida lhe poderia entregar uma nomeação a Best Suppoting Actor.
Mas vamos aos factos e apesar de ser um produto muito bem construído a indicação que mais facilmente consegue receber é a de Melhor Argumento Adaptado. A fita é feita com orçamento de filme de premiação, todavia no pacote final não entrega ainda a maestria que estamos habituados a ver em películas de Oscar. O que não é um indicador de que seja algo que devemos passar à frente, bem pelo contrário. A discussão, ou melhor a abordagem que é feita, do tema central está muito bem conseguida e dá espaço para debate, um debate que nem está assim tão datado como queremos fazer parecer. Tudo bem que os exemplos do filme são um extremo e nada ali é dentro dos parâmetros do politicamente correto mas mesmo assim consegue alertar-nos para um forma de viver a religião que não é tão distante assim dos nossos antepassados e que mete o dedo na ferida de um público que facilmente cai no erro de apontar os defeitos nas crenças alheias. Para além disso o elenco carrega um peso muito alto e entrega um trabalho imaculado, salvo raras exceções com trabalhos de criação interessantes e que merecem ser observados com outros olhos. Os temas estão lá, numa perspetiva que vai muito mais além do drama barato, mas que está longe de resvalar par algo demasiado irrealista. Temos apenas de salientar que o argumento se poderia ter preocupado um pouco mais, nos últimos minutos, em se defender menos com soluções Deus Ex Machina. Se por um lado a morte de Sandy em detrimento da de Arvin foi bem justificada, o mesmo não podemos dizer de Carl. Porque é demasiada sorte, ou pontaria, que Arvin se consiga desviar duas vezes de uma morte quase certa e ainda conseguir o feito de acabar com a vida dos seus adversários, este ponto piora se pensarmos que Carl é um polícia treinado... Mas à parte disto The Devil All The Time é uma aposta segura e ganha na Netflix, e agora é esperar para ver se realmente há ou não Oscar por aí, será que os standards da cerimónia se vão manter em altura de pandemia? E mesmo que não se mantenham, será que este não é daqueles projetos que vale menção em pelo menos uma categoria? Fica a dúvida.
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