Contos Bastardos #10 • O meu avô também é neto

Contos Bastardos #10
O MEU AVÔ TAMBÉM É NETO

Esta frase caiu-me assim de rajada numa destas manhãs, como um daqueles pingos grossos de chuva que nos atravessam o cabelo e bombardeiam em cheio o couro cabeludo. Gelados. Incómodos. Despertadores. Inesperados.

Imaginar é difícil, eu sei. Um homem de quase 80 anos, com a pele marcada pelo Sol dos Verões que já viveu, a cara traçada por linhas que contam histórias de tantas emoções, mais de vinte e nove mil dias vividos. E as mãos: nas palmas de cada uma, impressa a fruta que apanharam. Marcadas pela terra que semearam, pelas palavras que escreveram, pelos corpos que tocaram.

Os vossos avós são netos. Nunca deixam de o ser, por mais anos que passem. Já foram minúsculos, já andaram ao colo, já brincaram à apanhada e ao 1,2,3, macaquinho do chinês, já houve um tempo em que não andavam de bicicleta porque não sabiam, um tempo em que não liam porque não conheciam as letras.

Houve um tempo em que não contavam histórias, mas ouviam-nas dos seus pais e avós, em que não aconselhavam mas recebiam conselhos, em que tinham medo do escuro e do papão e não da doença e da morte.

O meu avô perdeu um grande amigo esta semana.

Esse amigo também era avô, também era neto. Nasceu no mesmo ano que o meu Chico e viveram muitas aventuras juntos. Sabemos de algumas, mas eles os dois sabiam mais. Agora é só ele quem sabe - e um segredo vivido em conjunto deve doer quando passa a morar só em nós. 

O meu avô já não tem pai nem mãe. Já lhe faltam alguns irmãos e amigos. Os avós são uma recordação muito distante e nem de fotografias se pode socorrer quando a memória lhe falha - porque ela falha, são vinte e nove mil dias-capítulos, todos tão diferentes, centenas de papéis a assumir. Milhares de palavras, milhões de pensamentos, sonhos e desejos. 

Nao sei se o Chico se lembra sempre que também é neto - que o pode ser, que isso lhe é permitido, que é legítimo que o seja. 

Ontem telefonei-lhe para lhe avivar a memória e para o ouvir. Ali, ao telefone comigo, que o fiz avô, fomos 2 netos por alguns minutos.

Texto: Sónia Costa

Ilustração: Filipa Contente