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Contos Bastardos #8 • Mãe


Contos Bastardos #8
MÃE

De entre os trajes pretos no cemitério, uns olhos azuis sobressaíam. 
Sabia de quem eram, já os vira em fotografias. 

E no espelho. 

(Mas não. Os seus olhos eram dele, que já os tinha fechado para sempre. 
Eram azuis porque ele adorava o mar, porque era a sua cor favorita). 

Ela levou as mãos à cara quando o viu. Sim, sou mesmo eu. 35 anos depois. Arrependida? 

(Lembrou-se das mãos dele, que nunca mais o iam abraçar. 
Que nunca mais iam unir mindinhos com as do pai. 
Agora parecia tão pequeno, aquele Homem enorme que lhe mostrou que são os Homens que definem as suas próprias unidades de comprimento. 
Aquele Homem a quem tantas vezes disseram que não o era.)

A pele dela era clara. Tinha sardas.

(Quando era criança, gabavam-lhe a tez de porcelana. Um dia, mergulhou-se na lama até às orelhas e foi secar ao Sol. Queria ficar assim para a vida. Que a cor tingisse a sua pele, que fosse de vez mais parecido com eles.) 

Ouviu-a falar. A voz era grave. Lembrava a sua.

(Não. Recusava-se a dever-lhe isso. A sua voz era dele, tinha de ser. Era a voz dele que ouvia ao falar com os seus próprios filhos, seus netos.)

Até o sorriso tinha semelhanças.  

(Mas não. Queria ter o sorriso bondoso que ele fazia quando era convidado para ir à escola no Dia da Mãe. 
Era a paródia da sala — mas quando chegava o dia do pai, era o Rei. “Não há fome sem fartura”, diziam-lhe ambos a rir) 

Uma tia afastada aproximou-se. “És mesmo parecido com a tua mãe.”

Mãe. Três letras que aprendera a juntar sem nunca dizer em voz alta.

Sem ser capaz de falar, acenou que sim.
Afinal, era mesmo. 

E agora despedia-se dela, ali deitada, para sempre.




Texto: Sónia Costa
Ilustração: Filipa Contente