COMING UP | CURSED
Um minuto é suficiente para a nova história da
Netflix nos conquistar! O design pitoresco que Frank Miller traz da Banda
Desenhada eleva o patamar do habitual universo das produções de fantasia do
serviço de streaming. A beleza de colocar luz e cor na penumbra de mundo
bastante vincado pelo negro é algo único é que casa bem com as histórias de
Miller, contudo ver isso no ecrã torna tudo ainda melhor e faz-nos partir para
esta nova aventura com uma expectativa muito maior do que a sinopse nos
apresenta. A lenda do Rei Arthur é um tema tão debatido que já caiu no cansaço,
mas Cursed vem desempoeirar o clássico numa roupagem e visão muito mais
apetecível e que consegue realmente acrescentar algo que seja uma verdadeira
novidade dentro daquilo que já conhecemos. Na primeira metade do episódio
inicial já conseguimos tirar duas conclusões: Estamos perante uma construção de
um universo ao mesmo nível do hit The Witcher, mesmo que com um
orçamento menor, além de percebermos que a narrativa segue caminhos mais
ousados que a simples e maçadora introdução e descrição de personagem que torna
este tipo de contextos com muitas personagens em algo chato de assistir. Em Cursed
muda-se o compasso do ritmo e o compasso geral das tramas com o selo original
da Netflix, que normalmente sobem uma montanha obrigando-nos a dar uma margem
de três ou quatro episódios até que sejamos realmente conquistados. Saltam-se
etapas, mas o resultado não podia ser melhor, Cursed vai dar que falar,
e talvez até se torne numa das grandes franquias da Netflix. Porquê? Nós
explicamos nesta edição do Coming Up!
A proposta de que toda a narrativa se desenvolvesse pela perspetiva de Nimue é interessante e ousada, um casamento perfeito para uma história que se pretende diferente, mas que continua a utilizar alguém que é canónico ao original. Não se foge aos princípios, mas vem com o fator de novidade. Sobretudo se pensarmos que na cultura pop mais recente a uniriam representação live action que tivemos da personagem foi em Once Upon a Time, onde apesar do destaque, a figura foi completamente engolida pela trama familiar dos protagonistas do show da ABC. Porém, apesar dos aplausos pela escolha, a opção parece servir apenas para comprovar de novo que a jornada do herói também funciona no feminino. E toda a lógica tipicamente masculina atribuída à personagem acabam por torná-la em apenas mais uma. O que acaba por ter um efeito contrário à ideia inicial de trazer uma mulher para o foco da ação. No resultado o que temos é uma protagonista ao mesmo nível de Ava de Warrior Nun, mas numa série que envolve um budget muito mais largo do que a que tem Alba Baptista como destaque. É um banho de atualidade numa época medieval apenas para servir as massas e preencher mais um check na longa lista de quesitos que uma superprodução parece obrigada a conter nos dias de hoje. Mesmo assim, a comparação e o facto de ter surgido por ideologias sociais, não são um ponto negativo, precisamente porque são uma novidade numa história que está escancarada em inúmeras animações, filmes, séries e livros. Na verdade, muito mais que Nimue, Merlin é o caso de alteração de personagem mais gritante e apesar de até poder ser interessante vê-lo fora das barbas e fatos de mago, desvirtua a figura com que crescemos e torna-se difícil encaixarmos que estamos a falar do mesmo feiticeiro que acompanhamos em Excalibur. O porte e alguns trejeitos chegam a soar como um reaproveitamento da fórmula acertada que criou Geralt em The Witcher. No entanto, acaba por se tornar num marco dentro daquilo que se pretende ser uma releitura.
Mas mesmo com estas atualizações que apresentam uma versão que aos olhos de muitos pode ser bastante distorcida, há algo que não se perdeu: A Magia. E nesse quesito Merlin consegue ser uma agradável surpresa, se o interpretarmos como uma busca de um anti-herói por protagonismo. Merlin é egocêntrico, um pouco excêntrico, mas é acima de tudo isto bastante dúbio, o que torna a personagem num dos mais interessantes focos da ação. Tudo em torno dele é feito com grandiosidade e o elemento sobrenatural presente em 90% das cenas. Rodeado de efeitos especiais, como o da chuva de sangue ou pela maneira como manobra o fogo Fey, mas sobretudo de um CGI que apresenta criaturas demoníacas de forma tão credível quanto aos das produções cinematográficas megalómanas dos grandes estúdios de Hollywood. Na mesma linha fica a demonstração de poderes de Nimue. Sem serem precisos grandes malabarismos, tudo fica entregue às feições numa estratégia em que menos é mais e em que o menos funciona na perfeição por lhe atribuir um certo realismo que cola bastante com as imagens de quem cresceu a ler Bandas Desenhadas com traços profissionais. As raízes que tomam o lugar das veias são a transposição que une de uma vez por todas a adaptação live action com a animação, sem se perder os elementos e valorizando a força que tem quando encarnada por alguém real. A magia de toda a série é essa, mas no conceito lato de magia é bom ver como em cada frame há a preocupação de não deixar desvanecer esse lado em detrimento da pesada construção deste universo sobrenatural. Só por isso já se prova como diferente. A magia cria o universo de Cursed, ao invés de ser um assessório como na maioria das tramas que têm magos e feiticeiros. Não estamos a falar de uma produção ao nível de Harry Potter, por exemplo, mas de um upgrade na maioria das histórias que vemos por aí no mundo do streaming ou nos grandes sucessos exportados dos Estados Unidos da América. Cursed não é, simplesmente, mais uma trama com cara de CW dentro do catálogo da Netflix. É uma produção que pode conquistar públicos de The Witcher e Game of Thrones, pelo misticismo, pela forma como nos desenvolve um storytelling sobrenatural e por todo o largo conjunto de arcos criados no seio de algo medieval. Pontos ainda, pela forma como Cursed reinventa a origem da Excalibur, e dá uma roupagem despida de atos divinos aos poderes de Merlin, dentro do que é uma trama que se passa na antiguidade, existe a coragem de cortar as linhas que costumam unir a magia e o divino. Parece existir em Cursed um outro tipo de entidades que justificam todas as façanhas de Merlin, dos Fey, e todos aqueles que são bafejados por poderes extraordinários. E corre no caminho inverso, apresentando a Igreja como vilã, algo que a lenda do Rei Artur já apresenta, mas da forma subtil possível à data do lançamento.
Enquanto uns acusam a série de ser lenta, e de
ter um ritmo que falha, Cursed prova que soube ceder tempo ao que um bom
conto medieval exige: A capacidade de conta a história à velocidade com que as
coisas aconteceriam na realidade. Como em qualquer lenda histórica, ou até na
própria narrativa da História de Portugal, há vários protagonistas, há várias
figuras que não podem ser deixadas de lado, e com tantas caras é importante
dar-lhe tempo para lhes dar relevância. Cursed tem isso. A verdade é que
temos muitos arcos, sim, mas não sentimos que sejam mais que o necessário. O
argumento sabe movimentar-nos no caminho certo e para quem já pôde explorar um
pouco mais da lenda do Rei Artur para lá daquilo que a Disney e outros estúdios
contam nas suas adaptações infantis, sabe que há uma expansão gigantesca de
personagens. Isso, ao contrário da crítica que chama a série de lenta e que faz
desistir algumas pessoas, obriga apenas a uma atenção redobrada e vem provar
que Cursed não é para todo o tipo de públicos, talvez até nem tenha sido
idealizada assim pela Netflix, mas a verdade é que nos mostra uma postura que é
assumidamente tranquila para nos fazer ansiar por ação de uma forma positiva. É
o oposto dos maratonistas que devoram séries e que não conseguem sobreviver sem
pensar no próximo capítulo, talvez seja esse o defeito de Cursed, ter
todos os episódios disponíveis e não dar espaço para teorizar. Torna-se no mais
recente exemplo de algo que está no streaming mas que ganhava muito mais
ao ser exibido na forma tradicional. Falando em tradicionalismos, o melhor
episódio para quem está habituado à elaboração corriqueira do mundo das séries será
o terceiro com todas as personagens a convergirem no mesmo ambiente e com um
problema e resolução no mesmo capítulo. Até porque Cursed faz parte do
grupo de produções, por ter tantos núcleos, em que as bombas vão rebentando em slow
burn em vez de termos constantes momentos de ação para culminar em ganchos
estonteantes. Aqui cada conjunto vai deixando a marca ao longo do episódio. E
isso nota-se sobretudo com Pym mas sobretudo com Iris que cresce nos
intermédios para se afirmar como uma das melhores estrelas do show.
Há claramente duas construções dentro de Cursed.
Se por um lado tem toda esta linha diferenciadora, a partir do episódio cinco
cai na facilidade dos clichês novelísticos sem que até aí parecesse indicar que
iria por caminhos óbvios. E aí sim, Cursed desce uns degraus no seu
potencial ao apresentar o romance típico da heroína com o antigo ladrão de boas
famílias dono de bom coração e que procura redenção. É chato e revisto, por
mais que seja algo presente na lenda que lhe deu origem, Cursed deu-nos
todas as pistas que ia inovar nesse sentido. A contracena de Katherine Langford
e Devon Terrel ajuda a descer o nosso afeto para com a trama. Há zero química,
zero noção de romance, quase que parece uma imposição e não algo que nasceu de
uma epopeia épica como nos quiseram vender até aquele ponto. Por outro lado, a
grande reviravolta da série apesar de mergulhar na escolha mais óbvia traz
outras vantagens. A revelação de que Merlin e Nimue são na verdade pai e filha
foi uma jogada inteligente para assegurarem a consistência da trama,
justificando o porquê de serem as duas personagens com maiores poderes. Além
disso aproxima-nos de Merlin que até este ponto estava completamente vilanizado
e a anos luz do velho barbudo e afável que identificámos. Nesse ponto, o clichê
fez sentido. E ainda trouxe consigo a possibilidade de Katherine Langford se
destacar nas deixas entregues por Gustaf Skarsgård. Até ao episódio cinco, a
atriz é a grande fraqueza da série, com a sua falta de empatia que não nos
consegue vender nem a rebeldia nem os seus problemas de identidade. Mais uma
vez a escolha de um nome famoso ajuda ao marketing, mas nada acrescenta à
personagem. Valha-nos Gustaf Skarsgård para salvar todo este segundo ato
carregando grande parte das cenas nas suas costas e tornando um Merlin
revoltado e egoísta em alguém por quem sentimos apresso e nos faz quer ver o
que vem a seguir na esperança de o vermos no auge da sua força.
No final, Cursed tem do seu lado todos os ingredientes para ser a receita perfeita. Depois de na última cena ter ditado o destino trágico de Nimue, a verdade é que já sabemos que ela retornará ao seu lugar, e tem todas as características para desenvolver uma loucura semelhante à de Daenerys Targeryan quando dominada pelas forças dos Deuses Ocultos. Cursed utiliza equações que já foram definidas como marcas de sucesso, mas perde pela longa temporada que tem. Teria conseguido um maior impacto dentro do mundo do streaming se tivesse adotado o modelo de Lúcifer dividindo em dois a temporada, porque tal como já avançamos antes, Cursed não é o tipo de história maratonável e por isso pode acabar por se tornar maçador para quem está habituado à velocidade da Netflix. Mesmo com tudo isto, partilha da sorte de ter um universo bastante rico e que expandido pode trazer caminhos interessantes que a tornem numa epopeia ainda melhor. Talvez falte uma adição no elenco que dê uma contracena ao talento de Gustaf Skarsgård, porque por mais surpreendente que seja Emily Coates, é uma atriz que ainda precisa de espaço de ecrã para crescer, e Katherine Langford é um problema de casting numa história carregada de potencial. A “cartada” de revelar a verdadeira identidade de Weeping Monk apenas nos últimos segundos aponta as agulhas da série para que vejamos a versão reimaginada da lenda da Távola Redonda já na segunda season. É esperar para ver, aguardando que a sequência saiba gerir um pouco melhor o conteúdo que nos quer apresentar.
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