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COMING UP | Onisciente



Imagine um futuro em que, querendo ou não, a sua vida se transforma num Big Brother. E não estamos a falar por períodos de três meses como num reality show, mas sim na sua vida toda 24 por 24 horas em que até o seu momento mais íntimo é vigiado por um drone, com a sua vida a ser monitorizada e gravada. É neste embasamento de um plot de Black Mirror que nasce a trama de Onisciente. Diretamente do Brasil para a Netflix, a história acompanha a cruzada de Nina para descobrir quem está por detrás do assassinato do seu pai, numa realidade em que a segurança está blindada pela tecnologia. Mas mais do que um simples drama de Agatha Christie adaptado à era das máquinas, caímos no meio de uma visão disruptiva que pode não estar assim tão longe de se tornar real. O controlo corporativo e maneira como vendemos a nossa privacidade a troco de uma falsa confiança no sistema informático, parece irrealista? Bem, o Google deu já um primeiro passo para as supostas teorias da conspiração, os cookies estão por todos o lado e até a Siri sabe cada palavra que dizemos. Onisciente será uma tradução do amanhã? Vamos entender o que se passa numa das séries escondidas no catálogo da Netflix e que merece atenção!

O argumento une si-fi com mistério, e apesar de não ser uma conexão nova, os pormenores tecnológicos dão um ânimo novo, dando vida a uma versão de tecnologia que não foge do que é feito atualmente. É contemporâneo, sem se deixar cair na teia das invenções enquanto nos mostra pequenos detalhes do sistema operativo dos drones para nos provar que tudo é controlado e como a segurança existe. O simples atirar de uma pastilha fora, ou colocar o lixo no contentor errado dá direito a uma multa imediata, cobrada na hora, numa infração que fica registada no cadastro de forma automática, mas este é apenas um pequeno exemplo de uma penalização leve. Se a infração for mais grave, como roubar um objeto registado no sistema como alheio, poderá ter de comparecer em tribunal em poucos minutos, num período de tempo cronometrado entre a sua localização atual e a Assembleia mais próxima. Até aqui tudo bem, soa-nos como algo maravilhoso onde cometer um crime se torna em algo praticamente impossível. Mas todos sabemos que não há nenhum sistema sem falhas, por mais difícil que seja encontrá-las. Na história, estes aparelhos que nos acompanham sem descanso e que gravam cada segundo do nosso dia, são vendidos sobre o slogan de privacidade e segurança, mas tal como as teorias da conspiração nos dizem, por mais que a mensagem seja essa há sempre quem tenha um poder de controlo maior do que aparenta. Há sempre alguém com maior influência ao comando das máquinas, o que torna o crime que serve de mote à narrativa muito mais engendrado e difícil de resolver.


Os efeitos visuais não estão em plena forma, o que revela claros problemas de budget. Contudo é inegável que este é um argumento construído por cima de uma ideia sustentada pelo trabalho do Design de Produção. Vivemos na época em que invadimos os nossos espaços com telemóveis, smart TVs, computadores, tablets, e vamos fazendo pequenas concessões até chegarmos ao ponto em que Onisciente se encontra, que poderá ser um prelúdio interessante para um avanço ao estilo de Minority Report, mas isso já é outro tema. Aqui vale o interesse futurista que a série tem, por mais que não seja uma ideia totalmente fora da caixa, encontramos uma versão estendida de Black Mirror. É como se conseguíssemos realmente acompanhar os desenvolvimentos das criações da série a longo prazo e entender como seria viver ao lado desses equipamentos. Ao mesmo tempo que se vão levantando questões como a intimidade sexual ou os blind spots que a adaptação a este método de vigia veio entregar. Alguns dos arcos da trama são um pouco datados dentro da ambientação da história, e há até alguns fatores de sorte que nos desconectam da realidade que Onisciente nos tenta vender.

Os primeiros capítulos são escritos na mesma fórmula da primeira temporada de Grey’s Anatomy, em que à parte do homicídio do pai de Nina acompanhamos um grupo de trainees, os residentes deste universo, a lutar por uma vaga de efetivos dentro da empresa que dá nome à história. A questão é que este núcleo transparece como algo démodé. O processo de seleção é semelhante aos dias de hoje, mas algo arcaico na década da série, assim como os dramas dos personagens que são demasiado colados aos problemas de 2020. Além do facto que estamos a falar de uma empresa de alta segurança que controla a vida de todos os habitantes daquela cidade, mas que não tem controlo sobre o caso de uma das funcionárias claramente sabotar o trabalho da outra, isto se for ignorada a parte de que uma jovem de vinte anos foi capaz de hackear e enganar a tecnologia de ponta com um plano que é delineado numa fase de completa instabilidade emocional, e feito por alguém que começou agora o seu primeiro emprego como programadora. Estas são as falhas mais gritantes de Onisciente, frutos de um orçamento apertado, mas sobretudo de uma condução de narrativa que não foi tão imaginativa quanto a das mentes que planearam as funcionalidades dos drones.


O elenco está na média e apesar de quase todos os personagens terem o seu momento menos bom, em que o diálogo se tornou demasiado preguiçoso para o argumento que tem. No geral conseguem convencer e servir a proposta. A jornada de Nina torna-se bem mais interessante pela fragilidade que Carla Salle lhe entregou. Há loucura ali. É como um vaso rachado, aparentemente perfeito, mas que vai quebrando aos poucos durante esta primeira season, para libertar a sua loucura e luto nos momentos finais. É realmente uma jornada para ela, porque mais do que planear as coisas, assistimos a um crescimento de personagem interessante e com sentido. A imaturidade de Daniel fez grande parte do sucesso da interpretação de Guilherme Prates, porém na última metade da série, parece existir um caminho muito mais definido sobre quem é o personagem, e no último capítulo conseguiu compensar o tempo perdido, deixando uma boa imagem para uma possível continuação. A voz e experiência de Sandra Corveloni valem-lhe o grande destaque da série, com a poker face necessária para a premissa do personagem, deixando-nos sempre no limbo entre o afeto e desconfiança. É a típica mulher com quem o “santo não cruza”. O objetivo foi cumprido, e mesmo que se desfaça o mistério antes do tempo, o trabalho da atriz continua a valer a pena, para nos deixar desperto aos seus pormenores de atuação. É uma linha perfeita, que nos deixa com “água na boca” para saber até onde é que ela vai agora. Mas não é a única deixar-nos com questões. O arco de Olívia ficou suspenso, e ficou por entender o porquê de todas as suas condicionantes sexuais dentro do sistema da cidade, além de deixar no ar uma possível rebelião contra o controlo. Outro limbo do show, e outro mérito da narrativa.

Nada é extremamente bombástico em Onisciente, mas dentro das séries originais da Netflix, este pode ser um achado interessante para quem não perde a oportunidade de saber todas as novidades sobre os novos gadgets, gosta de explorar um bom reality show ou para os fãs de um simples mistério. Neste último ponto, vale ressaltar a quantidade de pormenores e pistas contraditórias que mantêm tudo mais coeso. Os dois últimos episódios são de longe os melhores dentro da season, com um ritmo quase perfeito e momentos de tensão que conseguem puxar pela nossa adrenalina. Fácil de maratonar, pelos seus seis episódios, esta é uma daquelas tramas que se preparou antecipadamente para o cancelamento, oferecendo um final que é lógico, mas que deixa espaço para uma expansão ainda maior deste mundo, com uma segunda parte a prometer momentos de maior ação. Se não quer perder a veia de Sherlock Holmes e tem curiosidade para entender em que direção o amanhã caminha, então Onisciente pode ser a série indicada. É uma agradável surpresa, e que vem provar que depois de Espanha, com La Casa de Papel e Élite, Alemanha, com Dark, Inglaterra, com Sex Education, o Brasil tem mais que 3% e Sintonia para nos mostrar.