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COMING UP | Coisa Ruim


Rodrigo Guedes de Carvalho é um dos rostos da frente desta quarentena, o rosto da informação. Mas nem só de notícias se faz o país e o mundo de Rodrigo que tem muito mais para entreter o seu público, e entrega-nos o mote para prestigiarmos um clássico do cinema nacional, com temas que são uma tendência muito mais atual agora do que na data da estreia em 2006. Coisa Ruim mergulha nas profundezas de um Portugal com mitos e lendas com sabor a histórias dos avós. Exorcismos, cartomantes, sessões espíritas, todas as fábulas macabras que já nos contaram e que sempre assumimos como invenção dos mais antigos servem de inspiração a um plot carregado de saber popular e com a verdade de um povo crente, um autêntico encontro entre passado e futuro nas entrelinhas de um filme que promete surpreender quem acha que é apenas mais um dentro do catálogo nacional. Longe disso, encontramos temas poucos debatidos, uma visão sobre o sobrenatural pouco explorada pelos argumentistas portugueses, e ainda velhas discussões como ciência versus credo, ou o olhar estereotipado da cidade para o campo. Mas mesmo assim consegue ser diferente? A resposta é sim, e nos explicamos porquê!

Yo no creo en brujas pero que las hay las hay, o ditado até pode ser espanhol, mas nada é mais português que um bom mistério, e se tivermos algum pormenor divino para acrescentar então aí estamos mesmo a fazer jus à nação que tem Fernando Pessoa e Camões com referência. Mas vamos desconstruir isto. E se todas as histórias da aldeia fossem reais? A verdade é que "onde há fumo há fogo" e não é por acaso que existem tantas lendas, tanto folclore. Uma família muda-se de armas e bagagens para o campo em busca de uma nova vida e encontra uma aldeia cheia de misticismo onde se acreditam em coisas inimagináveis e em que a base científica é a palavra de Deus. No entanto aquilo que parece uma loucura absurda de gente pouco instruída pode ganhar outros contornos quando a família que chega de Lisboa começa a viver experiências paranormais que parecem estar a expandir-se de dia para dia. É a nobreza do saber popular que deita por terra os graus académicos de quem pensa que tudo se resolve e aprende através dos livros e diplomas. Aqui a narrativa é contada ao contrário, sem se preocupar na sua controvérsia, mas sim em provar que por vezes também é preciso alguma fé para conseguirmos que nos sejam entregues algumas explicações e justificações.


Apresentado desta forma até pode parecer algo com uma carga dramática profunda, e uma película cinzenta e pesada. Mas não é. Coisa Ruim é uma história diferente por cá, mas com o mérito de abordar um género bem consumido e trabalhado lá fora. É a visão nacional que temos dos contos que inspiram hits como American Horror Story, por exemplo. De Canijo a António-Pedro Vasconcelos, o cinema português tem várias vozes, aqui a de Tiago Guedes, que assume a realização do argumento, é aquela que grita por uma identidade bem diferente e arrojada em relação às que nos contaram antes. Coisa Ruim satisfaz os desejos "hollywoodianos" de quem ama uma boa história sobre o sobrenatural com proximidades de clássicos como The Sixth Sense. Apesar de acompanharmos uma única família, cada um tem o seu próprio arco, não é o típico terror de ação rasca em que procuramos a próxima vítima, mas sim um encorpado drama psicológico em que o terror se vai apoderando de cada um à sua maneira.

Abre-se espaço para se levantarem debates sobre as bases da fé, sobre a credibilidade das gentes da aldeia, sobre explicações científicas para quase tudo, para diálogos sobre educação, casamento. Há abertura para tudo enquanto o quebra-cabeças continua a funcionar em pano de fundo. Tudo se vai interligando com a sorte de ter como figuras de destaque um elenco luxuoso que nos transmite cada fragilidade do personagem sem que seja necessário dizermos o que sente a cada segundo de ecrã que tem. Manuela Couto é já bem conhecida do grande público, mas aqui envolve-se na fragilidade de uma mulher citadina que procura respostas sobre o que se passa com a sua família enquanto tenta inserir-se numa escolha do seu marido. Adriano Luz representa o chefe de família, no verdadeiro sentido prosaico do cargo. No final das contas é ele quem arrasta a boa vida que levavam para o pântano de fantasmas, e tudo isto sem ter conseguido resolver alguns dos esqueletos que guarda no armário da família, como a frustração que tem com a filha, Sofia que sem trabalho e ainda no inicio da vida adulta, já tem um filho nos braços sem um marido ao seu lado. Este é um dos pontos principais da trama, mesmo que não tenha uma grande expressão dentro do tempo de filme, mas mesmo assim deixa-nos antever o início do fim da história de uma família perfeita e comprova que mais do que um espírito vingativo, foram as escolhas que deitaram a felicidade pelo cano abaixo.


O destaque no elenco vai para Afonso Pimentel, o aparente filho perfeito que não parece ter um grande impacto dentro do que o argumento nos quer contar, mas que se vem a provar como a chave de todo o mistério. Ainda com uma carreira em ascensão à data da estreia do filme, Afonso Pimentel marcava mais um golo na sua carreira continuando a manter um currículo imaculado no Cinema depois da sua estreia em Adeus, Pai. Coisa Ruim é um passo gigante e um bom exemplo de como uma atuação depende muito mais da intenção e do tom que o personagem exige do que de grandes monólogos que pouco acrescentam à densidade da personalidade. Dar vida ao Diabo, mesmo que implícito, sem cair no facilitismo da caricatura é um dos pontos fortes da trama, e valeu-lhe a capacidade de Pimentel provar que tem muito mais camadas. E vale louvar ainda o esforço para nos entregar pequenos momentos que realmente nos aumentassem a credibilidade da história que envolve Rui com Ismael, o diálogo inicial com a mãe e a discussão científica entre Rui e o Padre são dois links perfeitos que fecham o círculo de um argumento sem mácula.

Ainda é difícil convencer os espectadores nacionais a olharem para o nosso cinema com outros olhos. Esta poderá ser a razão pela qual esta longa-metragem não continua a ter ecos até hoje. Porém, nos dias atuais o efeito da mensagem talvez fosse outro e valorizássemos muito mais os plot twists que nos oferecem. A nova geração de adultos de hoje cresceu a acompanhar séries e filmes onde a fantasia é o que mais ordena. A visão para o argumento seria muito melhor, o que chega até a ser um ponto interessante dado que toda a narrativa da trama nos fala de como a forma como olhamos para as coisas nos pode apresentar diferentes soluções. Talvez este seja um caso de um projeto certo num mercado que, na época, não estava pronto para o receber. Longe dos romances arrastados, dos biopics ou de sci-fi esdrúxulos, Coisa Ruim passa-se aqui, num país com muita história e com muito para contar. Passa-se entre nós com o realismo possível dentro do sobrenatural, e é a prova de como um baixo orçamento ainda rende grandes obras, basta um bom casamento de elenco e história. Deixamos a sugestão, porque em tempo de ficar em casa não há desculpas para não valorizarmos o que é nosso e darmos novas chances de nos surpreendermos.