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COMING UP | RAIVA [Globos de Ouro]



Puro cinema de autor. Raiva é um espelho de uma luta que passa através dos séculos, numa critica à estratificação social com um projeto que vai ao detalhe e se deixa envolver na delicadeza da qualidade cinematográfica para representar Portugal dos anos 50, contanto uma história de luta, vingança e de trabalho. Sem exageros, Sérgio Tréfaut carrega a narrativa para o debate da falta de oportunidades na mesma medida que deixa os talentos do elenco brilharem para lá dos diálogos.

A sinopse fala-nos de Palma, um homem obstinado que luta pela opressão, mas cuja maior batalha é conseguir pôr pão na mesa para a sua família, que no Alto Alentejo tenta sobreviver à seca depois dos seus terrenos terem sido confiscados por gente com maior poder na sociedade. A antiguidade está retratada apenas nos figurinos e na escolha pelo preto e branco, porque os paralelos com os dias de hoje estão todos lá. É a transposição que coloca em discussão a evolução dos tempos e a forma de como ter um berço certo ainda passa por cima das capacidades e esforço.


Ainda que com subtileza, há espaço para mostrar como as mulheres com todas as suas limitações à época, ainda conseguiam impor-se. A velhice é, ainda mais, louvada com o respeito assente pela personagem de Isabel Ruth, a avó matriarca que liderava e puxava pelos interesses da família sem medo de se sujeitar ao mesmo tempo que critica a inercia do seu genro e traz à tona a guerra de sexos. A atriz é a representação da mulher-forte, sendo o dramatismo da personagem um dos pontos fortes do desenvolvimento. Tudo isto enquanto nos transporta para a crueza da ação. Faz jus à imagem que temos deste período histórico, e que ainda pode ser visto em casais com idades mais avançadas em pleno século XXI. É a força controlada no contraponto entre se fazer ouvir e manter o seu lugar num universo liderado por homens.

A narrativa é simples, e sobretudo gráfica dando mais ênfase à beleza das paisagens e à recriação histórica do que propriamente à complexidade da trama. Até pelo seu olhar clínico e realístico sobre a forma como os “chefes de família” se viam obrigados a submeter-se às vontades dos mais influentes e como a má fama de um homem significava uma autêntica perseguição. É neste ponto que o filme ganha um leitura diferente e muito mais cinematográfica com o drama de Palma que se vê obrigado a procurar atividades clandestinas para fugir da pobreza extrema e não ter de se sujeitar a trabalhar com o seu antigo patrão. Contudo, nada corre como o previsto. Num meio pequeno tudo se sabe e por isso pouco demora para que os contactos falassem mais alto. A polícia começa a investigar e de forma bem arcaica acaba por usar a esposa do protagonista como meio para atingir o fim. Leonor Silveira, que dá vida à mulher de Palma, tem pouca incidência na obra, mas é dona de um dos maiores plot twists.


Raiva vai beber da fonte do clássico, servindo-se de alguns dos maiores temas já revisitados noutras películas e usando-os como muleta para criar uma narrativa. Filmado ao jeito de documentário, Hugo Bentes soube enquadrar-se com fidelidade na ideia que temos do que eram as obrigações de um homem em 1950, sem deixar de ter na sua interpretação a riqueza da uma figura amável e livre. Não há cinema de autor em Portugal sem que se fale de liberdade, esta é a coqueluche de uma nação que tanto lutou para quebrar as amarras, e neste projeto todos os personagens procuram algo mais, e demonstram pensamentos além do seu tempo e espaço. Mariana, a filha mais velha do casal em que o projeto se centra, é o exemplo disso. Uma mulher ativista que salta por cima dos estereótipos para também ela lutar para a igualdade.

No seu ritmo lento, os argumentistas sabem dar brilho àquilo que querem realmente explorar. O contexto de Raiva merece espaço de ecrã pela importância cultural num país onde as camadas mais jovens muitas das vezes desconhecem a dureza das suas tradições. É um épico bem feito que conquista os amantes da fotografia e que conta com interpretações bem coesas que se sustentam nos pormenores colorindo o filme e transformando-o em algo bem leve e atrativo dentro do género.

Ricardo Neto