Fantastic Entrevista | José Pacheco: "Não poderemos adiar a humanização do ato de educar"
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Nesta edição do Fantastic Entrevista, estamos à conversa com o professor José Pacheco, um escritor português de 68 anos que é um crítico do sistema tradicional de ensino. Depois de ter revolucionado os moldes tradicionais de ensino na Escola da Ponte, o professor português, mestre em Educação da Criança, pela Universidade do Porto, atualmente reside no Brasil, onde coordena mais de 100 projetos ligados à educação. 40 anos volvidos desde o nascimento da famosa Escola da Ponte, José Pacheco considera que é preciso mudar a mentalidade dos professores para inovar na Educação.
Localizada a cerca de 30 Km do Porto a
Escola da Ponte é hoje a única que se distingue em Portugal graças ao seu
modelo de ensino ímpar. À semelhança do que vai acontecendo em alguns países do
norte da Europa, como Finlândia e Dinamarca, na Escola da Ponte portuguesa não
existem turmas, exames ou programas de ensino pré-definidos. Os alunos e professores
são completamente autónomos e entre o que é ensinado e aprendido está apenas um
aluno motivado.
Por ocasião do lançamento de mais
um livro com a chancela das Edições Mahatma, "Um Compromisso Ético Com
a Educação" o professor José Pacheco percorreu já várias escolas do
país, transmitindo aos seus docentes novas formas de estar no ensino.
A Escola da Ponte é um projeto
que visa sobretudo uma maior autonomia tanto para os alunos quanto para os
professores. Para além desta, quais são as principais diferenças que podemos
encontrar entre o modelo de ensino que defende e aquele que todos conhecemos?
Venho repetindo que a profissão
de professor não é um ato solitário, que o professor deve fazer da sua
profissão um ato solidário. Professor sozinho em sala de aula é um dos absurdos
do velho modelo de escola. Sozinho, ele não é autónomo. Sozinho, o professor é
auto-suficiente. E, porque um professor não ensina aquilo que diz; mas
transmite aquilo que é, um professor sozinho na sala de aula transmite individualismo...
Por isso, uma das grandes diferenças consiste no fato de a Ponte desenvolver
autonomia, em conformidade com os valores constantes da matriz axiológica do seu
projeto educativo.
É necessário passar de uma
cultura de solidão para uma cultura de equipa, de corresponsabilização.
Sozinhos, os professores nunca conseguirão ensinar tudo a todos. O professor
assume dignidade profissional, sendo autónomo-com-os-outros. O trabalho em equipe pressupõe um
permanente convívio, estabilidade e lealdade a valores e princípios de um
projeto. Isso não acontece, por exemplo, no contexto de escolas onde existe um
horário padrão. Porquê 50 (ou duas vezes 45) minutos de aula, se a aprendizagem
acontece 24 horas por dia? Porquê 200 dias letivos, se nos educamos nos 365 (ou
366) dias de cada ano?
Eis outra diferença: uma gestão
diversificada de tempos numa multiplicidade de espaços. Muitas outras poderia
referir, mas quedar-me-ei por uma, que talvez seja o “nó górdio” da crise que a
Escola atravessa. Quando o professor reelaborar sua cultura pessoal e
profissional, o resto mudará. Talvez, então, a escola possa se reorganizar
operando uma definitiva rutura com o velho paradigma da escola, quando forem
eliminando erros do modelo atual de formação. Não duvido de que as universidades
disponham de excelentes professores.
As universidades dispõem de excelentes
formadores, que praticam uma formação reprodutora de um modelo escolar, que deu
resposta a necessidades sociais do século XIX, mas que não faz sentido manter
no século XXI. A formação de professores continua imersa em equívocos. Ainda há
quem creia que a teoria pode preceder a prática e encha a cabeça do formando de
tralha cognitiva, ingenuamente acreditando que ele irá “aplicá-la” na sala de
aula. Ainda há formadores que adestram formandos na planificação de aulas,
quando deveriam prescindir dessa inútil herança de práticas sociais do século
XIX. Ainda há quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria
ser tomado como sujeito em transformação, no contexto de uma equipa.
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Na primeira obra da sua autoria, que a Editora
Mahatma levou a público – Avaliação da Aprendizagem na Escola da Ponte-
encontramos uma avaliação positiva a este sistema de ensino?
Creio que sim. Mas deverão ser os
leitores a dizê-lo...
Quais são as principais
mais-valias?
Os efeitos do projeto, que
relatórios de comissões de avaliação independentes atestam são bem melhores do
que os obtidos pelas escolas ditas “normais”. Esses resultados constam de
relatórios de avaliação externa, elaborados por equipes nomeadas pelo
Ministério da Educação de Portugal. São produto de uma avaliação isenta, e
atestam a elevada qualidade das aprendizagens realizadas pelos alunos.
Diz-nos o último dos relatórios
de avaliação que, quando transitam para outras escolas, os alunos da Ponte
alcançam melhores notas do que os alunos de outras escolas conseguem alcançar.
E, se no domínio cognitivo isso acontece, muito mais significativos são os
níveis de desenvolvimento sócio moral. É grande a preocupação com a vertente
ética. Sabemos que o desenvolvimento ético acompanha o desenvolvimento
cognitivo, sendo mutuamente influenciados. Não fragmentamos os saberes: estudos
realizados com adultos formados ao longo dos últimos 40 anos demonstram que
todos os nossos ex-alunos são pessoas socialmente integradas e realizadas.
Talvez possa acrescentar que a Escola da Ponte provou que é possível outra
educação, aliando excelência acadêmica à inclusão social.
O Ministério da Educação em Portugal, os pais,
os alunos, como é que olham para a Escola da Ponte e o seu modelo?
Os pais olham-na com senso
crítico e elevadas expectativas. Aliás, fazem-no sendo maioria no órgão de
Direção da escola... A Ponte não tem diretor. Os jovens vêem-na, não como
alunos (os “não iluminados”), mas como sujeitos aprendentes, no exercício de
uma liberdade com responsabilidade, que lhes propicia uma aprendizagem da
cidadania no exercício da cidadania.
Quanto ao Ministério...
A Escola da Ponte é,
infelizmente, a única escola com um contrato de autonomia, que ainda contém uma
réstia de autonomia... No quadro dessa autonomia mitigada, a Ponte escolhe os
seus professores (por concurso universal e com regras!) Os professores não
deverão fazer concurso para ter um emprego, para trabalhar na escola mais
próxima da sua residência, nem trabalhar em duas ou três escolas, para
assegurar um melhor salário. O professor deverá aderir a um projeto, em
dedicação exclusiva. Eis mais uma diferença.
Talvez devamos apelar ao bom
senso dos titulares do poder público, pedir-lhe que esteja atento a excelentes
práticas que muitos educadores vêm produzindo. Intuo que as escolas carecem de
espaços de convivência reflexiva. Que precisamos de compreender que pessoas são
aquelas com quem partilhamos os dias, quais são as suas necessidades
(educativas e outras), cuidar da pessoa do professor, para que se veja na
dignidade de pessoa humana e veja outros educadores como pessoas. E compete ao
Ministério da Educação criar condições para que tal aconteça.
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Uma das alterações que defende
ao sistema de ensino é o fim dos exames. Sem exames, como é que se avaliam as
competências e conhecimentos adquiridos?
O atual Governo talvez esteja a
resistir à tentação da “examocracia” (à praga dos exames nacionais). Acabamos
de sair de um período de governação durante o qual se insistiu na ideia de que
realizar mais exames contribui para a melhoria das notas, o que constitui uma
medida de política educativa equivocada. Porque não é a preocupação com o
termómetro que faz baixar a temperatura...
Quando escutava os anteriores
responsáveis pelo Ministério da Educação falar da Finlândia como referência de
boa qualidade da educação, eu perguntava se falavam da mesma Finlândia que eu
conhecia. Porque os via introduzindo mais provas, quando a Finlândia já havia
prescindindo de realizar exames.
Um exame pouco, ou mesmo nada
prova. É um dos mais falíveis instrumentos de avaliação. Talvez por isso, a
Finlândia os tivesse abolido... E, se os anteriores responsáveis ministeriais
insistiram em os multiplicar, isso só pode ser reflexo de ingenuidade
pedagógica.
E ainda há “professáurios” que
acreditam na bondade dos rankings! Nos primeiros lugares, são incensadas
escolas particulares, que obtêm “bons resultados” à custa de uma pré-seleção de
alunos e da prática de um subtil darwinismo social. Os que são submetidos ao
decorar matéria sem sentido (sem atender a um dos princípios básicos da
aprendizagem: o da significação), para verter em testes e, depois... esquecer.
Um teste quase nada prova. É um exercício inútil e até mesmo prejudicial.
Quando um professor fica na sala,
a vigiar jovens, ele presume que esses jovens são potencialmente desonestos, se
puderem copiar, vão copiar... O professor-polícia não fala, mas o não-verbal
fala mais alto. O vigilante está a transmitir valores em que acredita, está a
desenvolver aquilo que as ciências da educação designam por currículo oculto. O
professor que aceita a indigna situação de fiscal está a transmitir
deslealdade, falsidade, mentira...
As competências e os
conhecimentos poderão ser avaliados, se nas escolas se concretizar uma efetiva
avaliação formativa, contínua e sistemática. Os registos de avaliação e as
evidências de aprendizagem constantes de portefólio de avaliação poderão
dizer-nos o que, efetivamente, as crianças aprenderam, quer no domínio
intelectual, quer no domínio atitudinal, porque o ser humano não é apenas
cognição, é multidimensional. Os jovens também são afetos, ética, estética...
Com um modelo de ensino tão
diferente, como é que se cumprem programas, currículos e alcançam metas de
aprendizagem?
É com “um modelo de ensino tão
diferente” que se cumprem programas, currículos e alcançam metas de
aprendizagem. No contexto do velho e obsoleto modelo de ensino, de que a
maioria das escolas enferma, nunca será possível cumprir programas, currículos,
ou alcançar metas de aprendizagem. Muito menos propiciar uma educação
efetivamente integral.
As escolas transformar-se-ão
quando, através da referência a uma matriz axiológica, a uma visão de mundo e
sociedade traduzidas num projeto, operem rupturas com uma tradição de educação
hierárquica e burocrática. Quando ousarem, com prudência (crianças, não cobaias
de laboratório...) reconfigurar as suas práticas, assumir formas específicas de
organização do trabalho escolar, em dispositivos de relação, nas atitudes do
dia-a-dia, que viabilizem práticas de educação integral. Quando as escolas
cumprirem, efetivamente, os seus projetos educativos. Algo que não acontece na
maioria das escolas. Sei que esta afirmação poderá irritar alguns cultores do
velho modelo. Por isso, me disponibilizo para um debate construtivo, fraterno.
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O que é que, na sua opinião,
podemos esperar do futuro da Educação em Portugal?
Fiz parte do Conselho Nacional de
Educação e fui relator do Parecer sobre a proposta de lei da Reorganização
Curricular. Já nessa altura, há cerca de duas décadas, manifestei a minha
surpresa e desagrado por ver manterem-se iniciativas de política educativa, que
não questionavam arcaísmos pedagógicos. Na época, era o estudo acompanhado, a
área de projeto, a educação cívica, que eram propostos como paliativos do velho
e obsoleto modelo de ensino. Como se o civismo fosse ensinado em uma ou duas
horas por semana e não devesse estar presente em todos os momentos de aprender
a ser e a conviver. Como se o projeto fosse algo para trabalhar em uma ou duas
aulas semanais...
Nos últimos anos, apesar da
profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e
afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação nacional. Esse desiderato
será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo
educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de
natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica. E
subsiste uma criminosa conivência do poder público e, em particular, do
Ministério da Educação em relação a essa nefasta situação.
Temo que essa situação de
impunidade se mantenha. Temo o obsceno silêncio dos pedagogos, porque, ainda há
pouco tempo, vi e escutei alguns, numa reunião com a Comissão de Educação da
Assembleia da República, bizantinamente, debatendo o número de alunos por turma
e sala de aula, no pressuposto de que deve haver turmas, aula e sala de aula.
Esse debate seria ridículo, se não fosse trágico...
Os seus livros têm entre os
docentes o seu público alvo, mas também os pais e alunos mostram um interesse
crescente. São livros que todos devemos ler?
Publiquei, em vários países, mais
de trinta livros. Desses, apenas um está publicado em Portugal... O formato e
conteúdo desse e de outros livros respondem à necessidade de aliar à
fundamentação científica e pedagógica um discurso acessível ao leitor comum.
Correspondem a uma latente solicitação de uma sociedade, que tomou consciência
da falência do modelo de ensino a que os seus jovens ainda são sujeitos, que se
apercebeu de que podemos realizar aprendizagens em múltiplos espaços sociais (e
que, dentro do edifício da escola, quase nada se aprende...) e que já se
anuncia a possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem.
No edifício da escola, nas
praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros
culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular,
duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, e um
projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de
comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno.
Quando fui aluno de escola
"tradicional", gastei um tempo precioso a decorar os afluentes da
margem esquerda de rios e de outras lengalengas que, agora, me ocupam a memória
de longo prazo. Não me fizeram mais sábio, nem mais feliz. São muitos e
diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o
que significa o termo “currículo”. Que, por exemplo, os professores não percam
tempo a tentar ensinar fora de tempo o que é um "dígrafo", ou
expressões como "sujeito nulo subentendido", o que são "plantas
epífitas", ou em que consiste um "ato ilocutório diretivo".
É preciso experimentar um novo
modo de organização, em equipas de pessoas autónomas e responsáveis, todas
cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente “pública”. Não
negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os
sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para
além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e
de assentar numa deontologia de troca “ganha-ganha”.
Que se perceba que toda a prática
tem teoria subjacente, que não há prática sem teoria. E que a fundamentação
teórica do ato de educar seja multirreferencial, numa práxis coerente com
necessidades educativas locais, escapando a modas e fundamentalismos pedagógicos.
Que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas na
relação. E que da qualidade da relação depende uma boa qualidade educacional.
As escolas poderão desenvolver um
currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A
velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão
intensas, enquanto as “naturalizações”, as “certezas”, as crenças ministeriais,
a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria
prevalecer a pedagogia.
Fantastic Entrevista - José Pacheco
por Ana Cristina Pinto
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