A dissonância de Salvador Sobral
Salvador é dissonante. A interpretação vocal delicada contrasta com a estranheza dos movimentos. É autêntico, é descontraído, é despreocupado com a imagem: preocupa-se com o que vai ali fazer, “passar sentimentos às pessoas”. Para o português que não vê o Festival Eurovisão da Canção, nada ali é “festivaleiro”. Mas o que é uma música festivaleira?
Portugal não participou no Festival Eurovisão da Canção em 2016, e por isso este ano a RTP prometeu que iríamos levar o concurso a sério, prometendo fazer rejuvenescer a competição.
Os artistas convidados vieram de diversas áreas da indústria musical. Alguns, como é o caso de Jorge Fernando, Nuno Feist, Lena D’Água e Rui Drumond, lembram-nos, literalmente, outros festivais. Também João Só e Héber Marques regressaram como compositores. O vocalista dos HMB foi, aliás, o autor da semifinalista de 2015 “Dança Joana” – sim, aquele hit de Filipe Gonçalves que a RTP não colocou no alinhamento dos intermináveis e enfadonhos medleys dos êxitos do Festival.
Rita Redshoes, Luísa Sobral, Márcia, Samuel Úria, Noiserv e Nuno Figueiredo foram outros dos compositores presentes, que surpreenderam por aceitarem o convite para participar num programa que outrora foi um marco da televisão portuguesa. Um programa com uma carga negativa que precisava urgentemente de ser modificada. A participação destes músicos foi importantíssima porque, para além de dar visibilidade ao Festival da Canção, legitimou-o e deu-lhe valor, ou pelo menos ajudou a iniciar esse processo, cujos resultados veremos com o passar do tempo.
Como intérpretes, foram convidados vários artistas que se tornaram conhecidos do público através dos famosos talent-shows da RTP1 e SIC – caso de Fernando Daniel, Deolinda Kinzimba, Rui Drumond, Kika (Viva la Diva), David Gomes e de Pedro Gonçalves (que é também um dos artistas da geração YouTube). Escolhidos diretamente pelos autores, estiveram em palco Lena D’Água, Beatriz Felício, Helena Kendall, Jorge Benvinda, Inês Sousa, Lisa Garden, Salvador Sobral e as Golden Slumbers. Em minoria, estiveram os cantautores – ou, neste caso, as cantautoras – Márcia e Celina da Piedade que interpretaram as próprias criações.
Depois de duas semifinais e uma final, “Amar Pelos Dois”, a balada dos
irmãos Sobral, acabou por se destacar e conquistar a noite com 10 pontos
atribuídos pelos portugueses e 12 pelos painéis de jurados regionais.
Apesar de não ter conseguido a votação máxima pela parte do público –
que preferiu o grupo Viva la Diva –, Salvador rapidamente se tornou no
grande favorito a vencer o Festival da Canção 2017. Em poucos dias, a
actuação tornou-se o vídeo mais visto no Youtube em Portugal.
A música apelidada por vários cibernautas como uma mistura da música dos anos 50 e 60 com um toque de banda sonora da Disney, destacou-se não só pela sua simplicidade, mas também pela interpretação sentida, e peculiar, de Salvador Sobral.
A música apelidada por vários cibernautas como uma mistura da música dos anos 50 e 60 com um toque de banda sonora da Disney, destacou-se não só pela sua simplicidade, mas também pela interpretação sentida, e peculiar, de Salvador Sobral.
Salvador é dissonante. A interpretação vocal delicada contrasta com a estranheza dos movimentos. Ele retrai e curva a cabeça. Ele escapa-se ao microfone no final do verso, cantado muitas vezes de olhos fechados. É autêntico, é descontraído, é despreocupado com a imagem: preocupa-se com o que vai ali fazer, “passar sentimentos às pessoas”. A música, o casaco largo e a performance no seu todo nada têm de “festivaleiro” para o espectador que não vê o Festival Eurovisão da Canção. Mas o que é uma música festivaleira?
Em 2014, Portugal fez-se representar com a canção “Eu Quero Ser Tua”, composta por Emanuel. Voto dos portugueses. Portugueses esses que em 2014 se referiam à música nas redes sociais como canção sem qualidade e até como “música pimba”. Susana Guerra – Suzy de nome artístico – não conseguiu qualificar-se para a Final do Festival Eurovisão da Canção por apenas 1 ponto. No entanto, a música é ainda hoje trauteada por fãs nacionais e internacionais e Suzy é das artistas eurovisivas mais requisitadas para festas e eventos relacionados com o Festival Eurovisão da Canção.
Outros exemplos podem ser referidos de outras nações. “Calm After the Storm”, dos The Common Linnets (2ºlugar em 2015), não será, certamente, uma música que apelidemos de eurovisiva. “Madness of Love” de Raphael Guallazi conseguiu o 2ºlugar em 2011 no regresso italiano ao concurso com uma música... Jazz. Os Lordi conseguiram a vitória para a Finlândia em 2006 com uma canção metal. A própria vencedora de 2016, “1944”, de Jamala, não poderia ser considerada uma música eurovisiva. Basta uma análise à história do Festival Eurovisão da Canção (e um olhar pela bibliografia académica como ao livro The Music of European Nationalism, Cultural Identity and Modern History, do etnomusicólogo Philip Vilas Bohlman), para perceber que as músicas eurovisivas com mensagens políticas não conseguem, por norma, grandes resultados no concurso, quanto mais vencê-lo. No entanto, a Ucrânia levou para casa o troféu o ano passado.
O leitor pensa que é o facto de levarmos uma balada que nos impedirá de alcançar um grande resultado no Festival Eurovisão da Canção? Em 2008 tivémos “Believe” de Dima Bilan, da Rússia. Já para não falar dos anos 90, com cinco baladas consecutivas a vencer o Festival Eurovisão da Canção. “Muito bem, mas Believe é cantada em inglês...” – a canção que venceu pela Sérvia em 2007 por Marija Šerifović foi cantada em sérvio. “1944” é uma canção billingue. E o argumento de que canções de países mal sucedidos no Eurofestival não conseguem vencer também não parece válido. Falando na história recente, a Sérvia – e muito particularmente a Áustria – não são propriamente grandes exemplos de nações memoráveis e hegemónicas em termos eurovisivos.
Falemos agora da imagem do Salvador. A imagem que lhe cobram agora, é a imagem que impactou o país. É a imagem que nos pode fazer colher frutos na Eurovisão. Quais são os participantes eurovisivos do século XXI de quem nos lembramos? Dos dissonantes. É dos Lordi, é de Conchita, é de Verka Serdushka, é das Buranovski Babushki, é de Måns Zelmerlöw e do seu boneco digital. O favorito nas sondagens para vencer este ano, o carismático italiano Francesco Gabanni, apresenta-se com um homem-macaco em palco. Se há fórmula para vencer a Eurovisão, compreenda-se: essa passa pela diferença e não pela norma. Expressa-te como quiseres, Salvador.
Certo é que nas últimas semanas, Portugal tem-se mantido entre o 4º e 8º lugar nas casas de apostas online, entre elas o Eurovision World e o Oddschecker – feito nunca conseguido antes na história das participações nacionais. Na Internet, os fãs portugueses rejubilam com a hipótese de poderem conseguir a sua melhor classificação de sempre: um 5º lugar é o mínimo para suplantar a marca de Lúcia Moniz e “O Meu Coração Não tem Cor”, em Oslo, no ano de 1996.
As hashtags inventadas por fãs estrangeiros são as mais sonantes nas redes sociais. #Salvadorable é fácil de compreender e #DoItForFatima mistura uma referência ao nome da canção espanhola “Do It For Your Lover” ao milagre de Fátima acontecido a 13 de Maio, o mesmo dia em que se disputará a Final do Festival Eurovisão da Canção 2017.
Se Portugal pode vencer o Festival Eurovisão da Canção? Arrisco-me a dizer que pode nunca ter estado tão perto. O que é que os portugueses podem fazer neste momento? Alguns deles dão o exemplo do Europeu de Futebol em 2016: acreditar e, principalmente, espalhar a mensagem nas redes sociais. Os heróis às vezes têm os nomes mais improváveis. O nosso pode chamar-se Salvador.
Por Rita Pereira
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