Duplo Clique | "O Pimba também é nosso"
“Pimba”, no dicionário Priberam da
Língua Portuguesa, é uma expressão portuguesa, informal e depreciativa. “Relativa
à
música
de
melodia
fácil
ou
pouco
elaborada,
com
estruturas
musicais
básicas
e
letras
superficiais
ou
de
cariz
brejeiro”.
“Som de cristal” poderia, com efeito, soar a uma grande ironia, mas não soa. Quem
o mostra é Bruno Nogueira, de volta ao humor televisivo com uma série de sete
episódios sobre a vida dos cantores populares.
Som de Cristal estreou dia 29 e atraiu
uma audiência perto de um milhão de pessoas, tendo sido o segundo programa mais
visto desse dia. Talvez porque tenha havido curiosidade em ver o regresso do
humorista à TV; talvez porque o público esperasse um programa cómico, apenas
mais um para sair da depressão pós-férias; ou talvez mesmo porque a música
popular seja “unificadora” – “às escondidas, para não parecer mal” – e consiga
mover os pés de quem não tem vontade.
E quem toca essas músicas? Artistas como os outros. No entanto, longe de caber nos cânones da ditadura do gosto musical. Porque têm um órgão no palco e bailarinas coloridas a dançar coreografias impróprias para um CCB. Porque os seus espetáculos não são sofisticados e fica mal aos olhos dos outros saber trautear uma letra que ponha “pau” e “cozinha” no mesmo verso. Mas os artistas que fazem dessa música a sua vida profissional são profissionais honestos, com tanta legitimidade quanto todos os outros. E têm vidas normais, iguais às vidas dos fãs que os seguem de lés-a-lés.
Som de Cristal começa com o ruído de uma qualquer estrada nacional. Bruno Nogueira e o respetivo protagonista do episódio seguem em tournée. Do asfalto para a mesa de um restaurante fluíram já as conversas mais genuínas, nos dois primeiros episódios, temperadas pelo humor tão único de Bruno Nogueira e a brincadeira que o artista souber devolver. O guião é aparentemente volante, mas funciona.
Primeiro, pela ideia, Bruno Nogueira e João Quadros estão de parabéns. Depois, a conceção em género de documentário. Tudo no Som de Cristal chega ao espetador como é, e a montagem, que muitas vezes recorrer ao corte sem transição, vinca precisamente a ideia de que o dia-a-dia é feito de atenções difusas e por vezes abruptas. A câmara está lá como um espetador, treme quando deve tremer e mostra o que nem sempre é mostrado. Os bastidores da carreira dos cantores populares são, como os de qualquer artista, alimentados pelas rotinas de trabalho e momentos de descontração. No episódio de estreia, Quim Barreiros mostrou o estúdio onde trabalha; no segundo, Marante foi até à sala onde costuma atuar para os alunos da Apolo. Bruno Nogueira parece, por vezes, deixar o convidado sozinho, mas logo reaparece com uma situação divertida.
Roberto Leal, Nel Monteiro, Ágata, Saúl Ricardo e Romana – que ainda vão passar pela série – vivem em parte dos espetáculos que fazem para a televisão, a máquina que tanto os pode promover como exaurir a imagem e os trabalhos discográficos que fazem. Os arrais de domingo repetem os temas vezes sem conta retirando-lhes o brilho que poderiam ter. Descredibilizam-nos aos olhos da audiência jovem que vive a abominá-los, enquanto o Portugal profundo vibra com elas degustando uma alheira. A televisão popular vulgariza. Por oposição, Som de Cristal trata de forma cuidada e honesta tudo o que acontece antes e atrás dos palcos. Pode não ajudar a revitalizar o crédito da música que (des)une os portugueses, mas faz certamente com que alguns vejam a singularidade dos seus autores, olhando para eles de outra forma.
A
música popular vai nas estradas de “um Portugal ainda mais real”. É o que os
portugueses poderão ver nas próximas cinco semanas de Som de Cristal, a série-documentário que respeita uma das
sonoridades mais castiças do país.
Som
de Cristal, para ver aos sábados, às 222h30, na SIC.
Duplo Clique - 62ª Edição
Uma crónica de André Rosa
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