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Duplo Clique | "Diz-me o que vês e dir-te-ei quem és"

 

Polémico e corrosivo. “Secret Story” é puro entretenimento, vulgar e despretensioso. Espantem-se os leitores: a quinta edição, portuguesa, corre a um palmo de alcançar a sua homónima, francesa, a oitava desde que o canal TF1 começou a emitir o programa em 2007. Por cá, a procissão já não vai no adro e é pouco católica. “Casa dos Segredos 5” marca a rentrée de Queluz de Baixo e nivela por baixo, precisamente, o nível da programação de domingo do canal mais visto pelos portugueses. Os lençóis das camas são novos, mas a roupa suja é a mesma.

 

Teresa Guilherme que o diga, já que parece preparada para tudo. É motivo do fetiche de um concorrente, mas primeiro que tudo é a “rainha dos reality-shows”, assumindo as honras da “Casa” há quatro anos sem tropeçar. É uma das caras mais queridas e competentes da TVI, competindo-lhe a apresentação da feira anual de vaidades e estereótipos ambulantes. Não se troca no discurso, faz trocadilhos – inusitados, divertidos e populares. Fofoqueira assumida, a apresentadora não se coíbe de contornar o guião, seguindo a rota das perguntas mais picantes e reveladoras, aquilo que o público está a pensar sem oportunidade de dizer. Em pleno direto, é percetível que se alegra genuinamente e as pessoas, em estúdio e em casa, nutrem por esta verdadeira profissional especial admiração.

A nova casa é um espanto: invejável localização, 600m2, um open space que desembacia as zonas privadas e as torna públicas. Os concorrentes são observados, perscrutados e instruídos por uma autoridade – a “Voz” – 24h por dia durante os dias que aguentarem no concurso, alvos em movimento debaixo de 30 câmaras e 70 microfones. Vinte e um concorrentes habilitados a participar em estudos comportamentais para tentar perceber como o ser humano é capaz de tudo por dinheiro – tenha fé ou não no poder do amor. São eles os novos habitantes, escolhidos a dedo pela Endemol e com aspirações de futuro mais ou menos ambiciosas (e é dizer pouco). Assumindo que, dentro e fora da moradia, o que mais vende tabloides são as histórias e relacionamentos potencialmente dramáticos, íntimos e controversos, o programa dá apenas um empurrãozinho a mais uma temporada de investigações cor-de-rosa da imprensa especializada. O lucro é garantido.

http://www.tvi.iol.pt/multimedia/oratvi/multimedia/imagem/id/14196284/
Assim como o prémio final de 30.000€, depositado nas mãos do vencedor que tiver disparado mais acusações em vez de boas ações. Tudo em prol da revelação dos segredos dos concorrentes, amigos, confidentes, traidores, amores-ódios, heróis e vilões pelos quais as audiências se apaixonam, tal e qual uma novela da vida real. O guião da “Casa” vai sendo escrito pela equipa de criativos da produção, enquanto, cá fora, os espectadores se enleiam nos enredos comoventes dos seus preferidos. É um comportamento televisivo censurável?

 
“Diz-me o que vês e dir-te-ei quem és”. Certamente injusto será julgar o caráter de alguém pelo tipo de conteúdos que essa pessoa sintoniza na sua televisão, reconhecendo o livre-arbítrio que reveste a suas escolhas. Não obstante, é unânime. A “Casa dos Segredos” gera desconforto e não convida a entrar, mobilizando, todos os anos, milhares numa campanha contra o lixo televisivo que objetivamente exala. A ERC vira a cara para o lado, pois não é da sua competência ordenar o cancelamento de programas por vontade popular, e além do mais os parâmetros de programação da TVI não são os que norteiam, por contraste, o serviço público. Porque é o programa que aplaude a ignorância, “corrompe os valores” e banaliza o corpo, não educa nem acrescenta valor. A verdade, porém, é que assegura audiências e o dinheiro dos anunciantes é o que paga os salários dos profissionais da TVI, deduzindo que nem todos eles se identificam com a índole do reality-show. A compreensão deste saldo entre ética e rentabilidade parece ser uma peça solta na argumentação de muitos telespectadores.


Este é o programa em que a estética visual, bem conseguida, não suplanta a mácula do conteúdo. “Secret Story” transforma o comum anónimo no comum dos famosos e garante ao canal, quase a custo zero, intermináveis horas de emissão. Concentra e dissolve audiências, mas agradou, pelo menos, a 2 milhões de pessoas no pico de visionamento da estreia. A “Casa” não vem abaixo, porque do chão não passa.

Duplo Clique - 20ª Edição
Uma crónica de André Rosa