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[Cinema] Virados do Avesso - Crítica

 

“Virados do Avesso é uma comédia hilariante capaz de surpreender quem pensa que já viu tudo”. O filme estreou em todo o país prometendo salpicar de humor os dias chuvosos que tanto deprimem os portugueses, na qualidade de uma comédia ousada e irreverente construída em torno de um tema “à margem” – a homossexualidade. Virados do Avesso ambiciona passar uma mensagem de aceitação da homossexualidade, mas não resiste a alimentar uma narrativa glorificante do “macho folião” na sociedade portuguesa, enquanto abre a passadeira ao desfile de outras tantas personagens estereotipadas de riso óbvio. A longa-metragem, uma estreia de Edgar Pêra como realizador no género da comédia, contou com um orçamento de 600 mil euros e foi rodada em Portugal durante apenas três semanas. Estará o cinema português a virar-se do avesso para conseguir sobreviver? Parece que sim.


Este filme chega às salas pela mão da produtora Ana Costa, responsável pelos recentes filmes A Teia de Gelo e o sucesso de bilheteira 7 Pecados Rurais, de Nicolau Breyner. Em trabalho com os argumentistas Frederico Pombares e Roberto Pereira e partindo da ideia original conjunta com Henrique Dias, a equipa de profissionais do cinema apresenta um argumento despretensioso, escusando-se a veicular lições de moral, mas que procura transmitir uma mensagem de aceitação da homossexualidade. O simples facto de todas as personagens que rondam João Salgado (Diogo Morgado) e Carlos Flores (Jorge Corrula) aceitarem a sua orientação sexual ajuda e de que maneira a naturalizar o assunto, no entanto, mais do que abordar o estigma de forma profunda e edificante, o filme parece usá-lo como pano de fundo à comédia de situação.


Surpreendentemente ou não, a história principal ronda os meandros das editoras. João Salgado é um escritor reconhecido na esfera literária, prestes a lançar um novo livro. O problema é que o último capítulo está por escrever e a sua vida está literalmente “de tanga”, quando vê o seu namorado nu deitado na cama. À semelhança dos lençóis, a sua vida torna-se numa rodilha de sustos e interrogações: João esquece-se que é gay (um gay discreto com um nível de vida estável) e a partir desse momento nega qualquer envolvimento com o namorado com quem mantém uma relação há 5 anos. Amnésia matinal, onde é que os espectadores já viram isto? O primeiro minuto traz à memória a adaptação portuguesa da novela argentina La Lola, em português Ele é Ela, transmitida na TVI. A diferença é que desta vez o sexo não perde o norte, apenas a cabeça do escritor que fica com a vida e a carreira em suspenso. A partir deste conflito inicial se desenrola a vida boémia de João, crente nos seus dotes de eterno solteiro à caça de mulheres. Enquanto o companheiro é renegado friamente, amigos, festas, álcool e fantasias conjugam-se como os ingredientes perfeitos para a receita trapaceira que a sua rival escritora, Isabel Amaro (Diana Monteiro), leva avante. Na verdade, a escritora mais não é do que uma pequena oportunista cheia de atributos físicos e esvaziada de ética e escrúpulos, apostada em afogar a carreira do concorrente numa garrafa de vinho.


O argumento não seria sólido sem as restantes personagens que habitam a vida do casal homossexual, pelo que não há personagens a mais nem a menos. Este aspeto ajuda, em certa medida, a colmatar a ausência explicativa das histórias pessoais de cada uma delas como justificação das suas personalidades. Da vida de João Salgado conhecemos os pais (Isabel Medina e Álvaro Faria) e a irmã, Catarina Salgado (Marina Albuquerque). A sua prestação exímia imprime credibilidade a uma família descompensada e por vezes lunática, como se avalia pelos comportamentos infantis do seu marido. Ricardo (Nuno Melo) é uma das personagens mais divertidas e desmioladas, um ator e escritor falhado com a ideia de um best-seller que nunca vendeu e com a educação do filho Joel (Miguel Partidário) a seu cargo, perante o alheamento de uma esposa muito amiga e boa ouvinte das mágoas de Carlos Flores.


Por sua vez, o editor que apara os golpes de desleixo profissional de João Salgado chama-se Rui (Rui Melo) e é o típico editor amigo do escritor e amigo da secretária despida de inteligência, um papel entregue à atriz Melânia Gomes que assim vai colecionando personagens já mastigadas e pouco desafiantes. O protagonismo e orgânica do filme tiveram Diogo Morgado como epicentro, secundarizando inadvertidamente, talvez, a performance de Jorge Corrula. A sua caraterização algo exagerada, de um homossexual expansivo tomado pelos trejeitos efeminados, mas plausível tendo em conta os gostos e modo de estar de alguns homossexuais, tornou-o excêntrico e quase aéreo. Acresce a isto o seu sofrimento amoroso e uma postura derrotista que o faz não lutar pelo salvamento da relação, desgostoso que fica folheando recordações e comendo gomas em forma de ursinho, para logo encontrar um repentino amor, o artista francês Pierre Cabace (Philippe Leroux) que entretanto surge no enredo.


A nível técnico, Virados do Avesso é uma boa surpresa. A realização de Edgar Pêra soube como ritmar as cenas, sublinhando, desde o primeiro minuto, a ideia de que o filme “se mexe” com vitalidade. Mau grado a existência de cenas em que o espectador de cinema está habituado a contemplar os planos mais próximos da cara dos atores, como forma de realçar certas passagens nos diálogos, as soluções encontradas funcionam e surpreendem a audiência em certos planos e enquadramentos. Na mesma linha, a cenografia de Joana Gaspar tratou de construir os espaços de ação de forma realista, decorando interiores de maneira credível para o que se pode esperar do estilo das personagens. Neste ponto é de destacar a cena da avalanche de livros no momento em que as personagens se envolvem, um cómico de situação bem conseguido.


A direção de fotografia, de Miguel Sales Lopes, tornou algumas cenas demasiado escuras e enevoadas, comprometendo a textura mais cinematográfica das imagens com excessos de luz e parco contraste. No entanto, a qualidade de imagem revelou-se muito nítida, tendo a Cinemate fornecido os meios técnicos para esta produção. Casando o ritmo da sucessão de imagens e sequências com uma banda-sonora irrequieta e competente, José de Castro assina a música original da longa-metragem que contou com a presença do cantor angolano Anselmo Ralph como convidado especial. Não me Toca, Ela é Gatuna e Única Mulher foram os temas originais do cantor que compuseram a banda-sonora temática do filme, encaixando que nem uma luva na história de amor de um homossexual sem travões perdido em cenários eróticos.


Anselmo Ralph é um dos três amigos de longa data de João Salgado, grupo constituído por Júlio (Marco Paiva) e Vítor (Miguel Borges), “garanhões” da vida noturna e assumidos avessos aos gays, que tratam de apelidar divertida e cruelmente de “larilas” e “panisgas”. A audiência não consegue conter o riso perante este jargão, sobretudo quando confrontado com o barman que atende João Salgado na manhã do terrível esquecimento. Rui Unas protagoniza um dos momentos mais inusitados do filme, qual barman metrossexual implacável face aos “picolés”, “retroativos” e “monoblocos”, como lhes chama. 


Virados do Avesso cumpre a sua função, divertir a assistência. E fá-lo de maneira convincente e admirável tendo em conta os meios que teve à disposição e a vontade de inovar num género que, nitidamente, é filão inesgotável. No entanto, a forma como é anunciado não deixa margem para dúvidas: não se trata de um filme que reflita pausadamente sobre a orientação sexual dos homens e os preconceitos que isso gera socialmente. Diogo Morgado e Jorge Corrula assumem os papéis com mestria e de forma singular, dando rosto e corpo a uma história capaz de atrair milhares às salas de cinema. Assim é de louvar o facto de, paulatinamente, as personagens gay irem povoando e problematizando esta questão no audiovisual português com amostras ficcionadas dos dramas que tantos anónimos enfrentam no dia-a-dia. O filme deixa o convite para que o humor e as mentalidades dos portugueses se virem do avesso.

Uma crítica escrita por André Rosa

Virados do Avesso é um filme de Edgar Pêra, com produção de Ana Costa e distribuição da NOS Audiovisuais. Teve o apoio financeiro do Instituto do Cinema e do Audiovisual e da Cinecool e Cinemate. Duração: 93 minutos.